Ninguém poderia imaginar, fora dos círculos da ficção, que o
mundo pararia por um vírus. Que se falaria de guerra contra um inimigo
invisível; que a economia global seria forçada quase ao full stop por um
vírus: a grande pandemia. Enquanto escrevo, assalta-me também o medo: será que
a grande pandemia virá a ser como as Guerras? A Grande Guerra passou a ser a
Primeira Guerra Mundial; depois a Segunda… Temíamos uma terceira, que seria
certamente final, da era nuclear. Quantas pandemias virão? Teremos de
numerá-las?
Ninguém poderia imaginar que nos confinaríamos,
voluntariamente, em casa, abandonando a vida profissional, social e até
familiar. Que deixaríamos de ter contacto físico uns com os outros e que as
nossas relações interpessoais passariam a ser, desde agora, reguladas pelo medo
do contágio e pelo distanciamento social.
Eu, privilegiado me confesso. Não me custa absolutamente nada
estar em casa. Nem sequer me custa o distanciamento social, coisa que, na
verdade, pratiquei toda a vida como, aliás, tenho dito um bocadinho por gozo.
Mas é verdade. Não sou, nem de perto, um “people’s person”. Por natureza
recatado, apreciador da solidão que me traz a minha companhia (a solidão só é
boa quando é escolhida e quando aprendemos verdadeiramente a apreciar a
nossa própria companhia) e a minha casa, não estou a fazer nenhum sacrifício.
Com excepção da família próxima que não posso ver; da pessoa que amo, com quem
não posso estar fisicamente, e de alguns amigos mais íntimos, não sinto falta
de nada.
Serão, certamente, poucas as pessoas nestas condições. A
maioria estará com dificuldades em se manter isolada. Respeito isso. Criámos um
modelo social em que nos tornámos dependentes de estar uns com os outros. Não é
um juízo de valor; é uma constatação de facto. Todo o nosso modelo social
desvaloriza a capacidade de aprender a estar consigo mesmo e se foca na
interacção social, aos mais diversos níveis. Pede-se agora às pessoas que se
isolem, que se confinem, que se distanciem, contrariando tudo aquilo que
estavam habituadas a fazer diariamente. Um caminho duro, mas necessário, contra
este “inimigo invisível”.
Uma das desvantagens de viver os acontecimentos na primeira
pessoa, de passar por eles, é que não se têm distanciamento. Não é possível.
Porque ainda não existe. E a sociedade não existe em caixas de petri,
que podemos observar, com segurança, do lado de fora. O problema é que estamos
justamente dentro da caixa de petri. A viver esta experiência na
primeira pessoa, uns de uma forma mais sofrida (os que adoeceram; os que
perderam alguém se se poderem despedir; os que lutam para salvar vidas…),
outros de forma um pouco mais ligeira, outros ainda sem compreenderem bem o que
nos está a acontecer. De qualquer modo, teremos certamente histórias para
contar, na primeira pessoa.
A minha curiosidade intelectual leva-me a querer imaginar
como se descreverá a pandemia daqui a cem anos… Espero sinceramente que não
tenha já um número, como as guerras, embora já se descrevam “vagas”. Parece
mesmo ser já certo, e iminente, uma segunda vaga. Mas isso só acontecerá se
aprendermos alguma coisa e, atempadamente, imprimirmos as mudanças necessárias.
Por mais céptico que possa parecer, estou convicto que essas mudanças não
acontecerão. Em boa parte, por causa dos políticos que temos, rodeados de (ou
eles próprios) “bons funcionários”. Noutra, porque há demasiados jogos de poder
em acção.
Logo nos inícios do confinamento social, dei com um
documentário que explorava as possíveis causas “disto” ter acontecido. O meu
primeiro pensamento foi o de considerar como se pode já estar a indagar causas
se ainda estamos a tentar perceber, concretamente, o que “isto” é e como se sai
daqui… Não há distanciamento de tempo, investigação, etc, etc. É impressionante
a velocidade com que se criam conteúdos para a televisão. Uma das entrevistas,
justamente no lugar que despertou o mundo para este problema, na cidade de
Wuhan, era a um epidemiologista chinês que estava convencido que os mercados de
espécies selvagens eram a raíz do problema. Deste e de outros. Se fizermos uma
retrospectiva desde há mais ou menos 20 anos, vemos que foi justamente da China
que vieram os diversos surtos víricos: gripe das aves, gripe A em não sei
quantas estirpes, SARS, etc. A explicação parece encontrar-se na forma como funcionam
os ditos mercados: espécies exóticas; animais selvagens; insectos das mais
variadas ordens, em pequenas gaiolas, amontoados. Aí estão, aguardando a vez de
ser comidos como acepipes culinários extravagantes ou mezinhas ancestrais, num
lugar onde se vão amontoando também dejectos, desperdícios orgânicos, e uma
miríade de seres humanos que aí quase vivem e aí se deslocam, por entre as
gaiolas amontoadas… Numa espécie de costume tradicional inaceitável nos dias de
hoje.
Claro que é sempre perigoso dizermos que determinado costume
ou tradição é inaceitável… No mundo não partilhamos todos as mesmas formas de
viver ou estar. E é certo que entre o ocidente e o oriente há diferenças
consideráveis. Na verdade, elas existem de país para país, região para região,
até mesmo cidade ou vila para a outra povoação vizinha. Não é aceitável
igualmente uma forma hegemónica de considerar o que é aceitável ou não. Quem
determinaria o aceitável? Ao longo da História, este erro foi cometido.
Saibamos não voltar a cair nele, para não voltarmos a assistir a fogueiras em
praças e “evangelizações” em massa.
Isto dito, é legítimo pensar, contudo, que haja evolução nos
costumes. E nas tradições. Respeitando as diferenças, é de esperar que os povos
vão evoluindo na sua forma de sentir e viver o tradicional. Da mesma forma que
hoje já não aceitamos os sacrifícios humanos, os massacres em arenas ou as
lutas de gladiadores, será de esperar que superemos, no conjunto das sociedades
mundiais, costumes que poderão prejudicar-nos e que, por serem tão barbáricos
ou desajustados da realidade que vivemos, já não deveriam fazer parte do
quotidiano de vida. As touradas são, porventura, o mais flagrante costume
barbárico da sociedade ocidental que teimamos em considerar uma “tradição cultural”…
Mas isso é outra discussão. No Oriente, a caça à baleia, o costume de comer
ossos de tigre moídos, cães, gatos, morcegos, serpentes, escorpiões e toda a
espécie de coisas exóticas parece extemporâneo. E tem um preço. Considerar
estas coisas tradições culturais é um anacronismo. Um sinal da teimosia humana
em não evoluir. E já se disse aqui que a mudança é inevitável. Não precisaria
de o dizer. É quase um axioma evidente, que desde Darwin ninguém se atreve
(seriamente) a discutir. A maturidade social (e cultural) não vem só pelo
humanismo. Vem também pela capacidade de nos libertarmos de costumes e formas
de estar ou fazer coisas que nos prejudicam. Estes animais, que não são objectivamente
comida, mas que vivem ou como animais de companhia (que nós forçámos a evoluir)
ou como selvagens, transportam os seus próprios micro-organismos, da mesma
forma que nós humanos transportamos os nossos. Os nossos são-nos inofensivos,
podendo até ser benéficos, estabelecendo relações simbióticas ou de cooperação
que nos facilitam a vida. Poderão, contudo, ser mortais para outras espécies. O
contrário também se verifica. E parece ter sido este o caso… porventura, vindo
dum morcego. Ou então não… Parece-me muito cedo para se dizer. Mas também me
parece muito evidente que esses mercados são alfobres privilegiados para o
desenvolvimento de doenças. Junte-se uma densidade populacional extremamente
elevada, deficientes condições de higiene e… Booom.
Há, portanto, muito trabalho a fazer. Para conter a infecção;
para sair dela e evitar novos contágios e, depois, para restabelecer a vida
quotidiana. Restabelecer. Não regressar. É impossível regressar ao “normal”.
Esse chamado “normal” foi precisamente uma parte do problema.
O desafio será, justamente, restabelecer a nossa quotidianidade
sem cair nos mesmos erros. O esforço será enorme. A todos os níveis: sociais,
económicos, financeiros, culturais. De forma de estar e viver. Passaremos a ter
que adoptar verdadeiramente e sem demagogias, um estilo de vida sustentável.
Outra das coisas que vai definir, a partir de agora, verdadeiramente repito (ou
seja, sem ser uma bandeira de campanha), a nossa vida será a sustentabilidade.
Pela primeira vez a humanidade confronta-se com um dilema: a grande maioria da
sociedade, no seu conjunto, pretende um regresso à “normalidade”, o mais
depressa possível, regressando aos “níveis” de anteriormente e, portanto,
reinstituindo o fútil como paradigma de comportamento e pensamento mas, o que é
necessário é justamente o oposto: restabelecer formas de vida em que as pessoas
se possam sustentar – a vários níveis e no sentido verdadeiro da palavra – mas
sem regressar aos padrões anteriores à pandemia, insustentáveis. Ou seja, sem
regressarmos ao “normal”. E aqui está o desafio: vivemos o extraordinário
momento em que é necessário definir um novo paradigma de vida. A
sustentabilidade em vez da normalidade. A responsabilidade em vez do fútil.
Se o conseguiremos ou não, não sei dizer. A minha opinião é
que não. Não para já; não depressa e não voluntariamente. Precisamente porque
somos governados, mundialmente, por “bons funcionários”, pessoas habituadas a
passear livros debaixo dos braços, porventura nunca lidos, movendo-se numa
normalidade de aparências e interesses, pessoais ou corporativos, e focadas na
sua própria sobrevivência e progressão social, económica e política. Esta
“ordem” estabelecida é que fez definhar o modelo sócio-económico em que nos
situamos, baseado no sacrifício de muitos para a ascensão de poucos, mas com a
aparência de um sistema igualitário e justo, constantemente defraudado para
favorecimento daqueles que hão-de ajudar a manter o status quo.
A situação pandémica que vivemos coloca directamente este
modelo em causa. Mas a instauração em vigor não permitirá, de boa vontade, que
faleça. Pelo contrário, será novamente reconstruído, para se regressar ao
consumismo desenfreado, alimentado pelo crédito insustentável, de forma a
garantir o rejuvenescimento do tecido económico, extremamente afectado pelo
confinamento e paragem forçada.
Perder-se-á, em minha opinião, a oportunidade de uma vida e
de uma geração, de transformar a sociedade em que vivemos, adoptando uma nova
forma de estar. Como aliás, já se tinha perdido aquando da última grande crise
financeira. Também aí se poderia ter aproveitado para a implementação de um
novo modelo sócio-económico. Mas não. Agora, acontecerá igual. Baseando-nos na
insuportável naiveté do “Vai tudo ficar bem” (que coisa estúpida e
insensível de se dizer!), a classe política desdobrar-se-á em inúmeras reuniões
para manter tudo na mesma. Sem chegar verdadeiramente a nenhum resultado,
aplicará compressas de água fria, placebos de ordens várias e comprimidos de açúcar
de confeiteiro, ao mesmo tempo que estabelece “linhas de crédito” insuportáveis
para os Estados e para as empresas, num malicioso apelo ao endividamento como
forma de recuperação da estabilização de tesouraria, sabendo que, na verdade, o
que está a fazer é garantir que o sistema, o seu sistema, continuará a produzir
dinheiro para os mesmos bolsos. Não haverá reformas sociais e políticas
verdadeiras. Não haverá, porque não interessam. Mundialmente, não interessam. A
China continuará a fazer do vírus uma oportunidade de negócio, exportando
milhões de toneladas de material, de qualidade ou não (pouco importa),
beneficiando da enorme massa de mão de obra virtualmente gratuita de que só os
enormíssimos países que vivem em ditadura podem dispor; os Estados Unidos
continuarão a viver na sua bolha ilusória de grande nação a lutar contra a
China e os emigrantes, sob o discurso absurdo de um presidente que os enterra
em valas comuns, mas que recolhe, ao que parece, enorme aceitação, porque o que
importa é ganhar dinheiro e “make America great again”; a ONU, já completamente
anacrónica, está esvaziada de qualquer poder de influência real, e a Europa
continuará igual a si própria: em diferentes velocidades, com variados
interesses, consoante se está no sul ou no norte, e completamente incapaz de
tomar decisões de fundo. Uma máquina burocrática perfeitamente concebida, de
“bons funcionários”, que foram tendo tempo e abertura para irem eliminando
todos aqueles que um dia sonharam com o “projecto europeu”. Não existe união
europeia. Existe uma instituição, que tomou esse nome, mas que é apenas o
conjunto dos seus membros, que se degladiam em reuniões intermináveis, de
“compromissos”, sem nenhum resultado prático, impondo as vontades dos países
ricos, que precisam absolutamente destes “mercados” para a exportação dos seus
produtos e, assim, garantir os seus excedentes orçamentais. Nos momentos de
crise, completamente ineficaz, por que não é uma união, mas um conjunto de
vontades. Nesta crise, como em todas as anteriores (financeira, dos migrantes…)
foi, uma vez mais, completamente inútil, actuando sempre por reacção. Nunca
tomando iniciativas ou antevendo problemas e propondo soluções antecipadas. Não
pode propor aquilo que não tem.
Esta Europa espelha o
problema das democracias ocidentais: estão velhas, delapidadas de conteúdos,
tomadas por burocratas com agendas pessoais, incapazes de responder aos
desafios que lhes são colocados, sejam os finaceiros, de todas a vezes que não
se consegue controlar algum factor na delicada balança que é o sistema económico-financeiro
em que vivemos, sejam de outra natureza como por exemplo agora esta pandemia.
E
assim se abre o caminho a aberrações políticas, projectos de governo absurdos,
personalidades populistas vorazes (algumas provando do seu própria veneno, como
em Inglaterra)… Temos cá os nossos próprios exemplos. Mas não resisto ao triste
espectáculo que o Brasil se tornou. O mais eloquente exemplo de estupidez
humana e incompetência política e governativa, que vai dizimando um país
inteiro, alicerçado na boçalidade, sua e da massa amorfa e analfabeta que o
segue, persegue e sustenta, conduzindo-os à absoluta catástrofe: “oh cara, eu
não sou coveiro!”. “A guerra é muito grande para uma mente tão pequena”, de
facto. Utilizo as palavras de um rapper brasileiro – de que não sei o
nome – e que apanhei por acaso numa reportagem sobre a disseminação pandémica
nas favelas.
Mas não é apenas a
circunstância de sermos governados a nível mundial por “bons funcionários” que
concorre para esta incapacidade. É também a circunstância de que nas situações
de crise, e nesta em particular, precisarmos mais de líderes do que de
políticos. Uma situação de crise é, por natureza, uma situação que exige
liderança. Não é este o tempo da política. Esse seria mais tarde, quando se
dicutissem os modelos a implementar, as reformas a fazer, as mudanças a levar a
cabo. Para isso serve a política. A liderança é outra coisa: é a capacidade de
– mesmo que esse líder seja político – conduzir a sociedade nos tempos de crise
de modo a superá-la, com o menor dano possível. Em Portugal, felizmente,
afiguram-se dois líderes. Politicamente diferentes, mas com a mesma intenção
(momentânea, claro, mas no caso é o que importa): evitar que em Portugal se
venha a passar o mesmo que nos países mais afectados. Falo, claro, do
primeiro-ministro António Costa e do líder da oposição Rui Rio. Não poderei
nunca simpatizar com o discurso neoliberal do PSD. Mas não invalida que seja,
nesta circustância, um líder que colhe o meu respeito. E tem-o demonstrado.
Virá certamente a ser primeiro-ministro. Concorre também que o presidente
Marcelo percebeu, finalmente, o seu papel. Arredado de selfies e beijinhos,
desempenha agora a figura de Chefe de Estado. Empenhados, os três, em que se
possa alcançar o melhor resultado possível. E está a conseguir-se. Não sem
alguns ataboalhamentos, próprios do portugalidade e da incapacidade da maior
parte dos políticos perceberem o seu papel: afastados também eles dos tempos de
antena, estão reduzidos à circustância da sua própria ineficácia. Mas está, de
facto, a conseguir-se. O confinamento começou muito antes do estado de
emergência, impulsionado por um movimento nas redes sociais colocando-se hashtags
de “stayathome” a propósito e a despropósito. Será, porventura, esse uma boa
parte parte do segredo do “sucesso português”. Para ele contribuiu sem dúvida,
mais do que certas medidas e, sobretudo, certas atitudes, metendo as pessoas em
casa.
Mesmo assim, lá vamos
vendo uns arrufos. Umas tentativas de desestabilizar. Sim, haverá por certo
desfazamento nos números; medidas ineficazes; falhas de material; coisas assim.
O que é inaceitável é o jogo baixo dos ataques pessoais e jocozos às pessoas
que dão a cara (e a inteligência) pela luta contra o vírus. O aproveitamento
político é indecoroso, populista e imoral.
O mesmo se diga dos
aproveitamentos políticos de presidentes de câmara, sedentos dos seus quinze
minutos de fama, tentando fazer do vírus oportunidade de grangeamento de votos.
Asco! Ou ainda das tentativas de instauração de polémicas opotunistas. Que
feio!!! Que desprezível a palhaçada em torno das comemorações do 25 de abril.
Quando eu nasci já era
livre. Não sei o que é não poder dizer o que apetece, fazer o que me apetece,
criticar o que julgo merecer crítica. Abertamente, sem medo de represálias. Toda
a minha vida me pude expressar como entendi. Claro, na teoria. Naquilo que é o
domínio do direito. Na prática, sei bem que opinar contra a corrente e expôr o que
está mal – ou a incompetência - tem um preço. Tornamo-nos indesejáveis ou
desconfortáveis… Não alinhar pela bitola do instituido ou ter opinião própria
não é tão bem visto como à partida se poderia pensar… Mas não importa. O que
importa é que tenho esse direito. Quando nasci, já era livre e não precisei de
lutar para isso. A minha luta já não é essa. A minha (da minha geração e das
que virão depois) é o de manter esse direito e de lutar para que ele seja
pleno. Assim, é importante comemorar a data. Fundamental mesmo.
Comemorar não é festejar.
Se reduzirmos o 25 de abril a uma festa estaremos a desonrar a memória dos que
lutaram para que a liberdade fosse hoje possível. Comemorar é fazer memória, é
tornar presente no hoje da história o acontecimento de há 46 anos que modelou a
nossa vida e transformaou a sociedade portuguesa de modo a que possamos hoje
viver e ser como vivemos e somos. E ter, inclusivamente, a liberdade de
discordar. Também não concordo com a forma. Poderia, eventualemnte, ter-se
pensado outra, mais consentânea com as circusntâncias em que vivemos e
aproveitado a ocasião para fazer também destas comemorações exemplo de
comportamento a adoptar. Contudo, foi decidido democraticamente comemorar desta
forma. E, justamente, na Casa da Democracia. Como, tanto quanto sabemos, a democracia
é fundamental para a liberdade (como a liberdade para a democracia), importa,
portanto, respeitar essa decisão. E cada um, no sossego da sua casa, comemeorar
como achar oportuno. Sabendo, contudo, que na Casa da Democracia se comemorou,
por todos e para todos, como democraticamente se considerou adequado. A
liberdade também é isto: saber respeitar aquilo com que não se concorda. É ainda
outra coisa: não procurar todas as oportunidades para aproveitamentos políticos
demagógicos e, sobretudo, vis.
Não imaginámos, por
certo, alguma vez confinarmo-nos voluntariamente em casa e apelarmos a plenos
pulmões ao “fique em casa”, afastando-nos dos cafés, da galhofa, das
bebedeiras, das noitadas, das festas, dos festivais… Tudo coisas giras, com
certeza. Fúteis, no entanto. Sobretudo quando não guiadas por nenhum conteúdo
que não seja o “vive o momento”, o deturpado “carpe diem”.
Não percebermos que não
podemos regressar, será muito mais do que perder a oportunidade. Se não
percebermos que não podemos regressar ao “normal”, pereceremos. Não apenas como
sociedade. Individualmente: uma pandemia é um inimigo mortal. E se a taxa de
mortalidade parece ser reduzida, o medo é real. As consequências também:
físicas, de sequelas, económicas, sociais… Não imaginámos, por certo, alguma
vez ter de vir a abster-nos dos abraços de quem gostamos, dos beijos e da
presença de conforto dos que amamos. Porventura, esta falta é a mais dolorosa:
da pessoa que amamos, se ficou longe.
Possam estes sacrifícios
não ser em vão. Possam estes tempos ser mais do que uma vontade fútil de
normalidade. Possam não ser postos em causa os sacrifícios de tantos que se
arriscam pela saúde dos demais.
Precisamos de
restabelecer a nossa vida. Mas não a podemos retomar, sem mais. É este o
momento de dizer basta aos passeadores de livros. De responsabilizar os
políticos, obrigando-os a trabalhar, verdadeiramente, pelo bem comum.
Não é um caminho fácil.
Mas não me parece que haja outro. A não ser que nos tornemos todos “bons
funcionários”. Retoremos a vida e caminharemos, decididamente, rumo ao abismo.
E, talvez, na próxima pandemia acordemos.
Afinal, é o fútil que
melhor descreve o nosso tempo. Mais que o Vazio. Já passámos o tempo do vazio.