sábado, 25 de abril de 2020

Deambulações correntes II. Do pandémico ao sustentável: a esperança por entre a incompetência

Ninguém poderia imaginar, fora dos círculos da ficção, que o mundo pararia por um vírus. Que se falaria de guerra contra um inimigo invisível; que a economia global seria forçada quase ao full stop por um vírus: a grande pandemia. Enquanto escrevo, assalta-me também o medo: será que a grande pandemia virá a ser como as Guerras? A Grande Guerra passou a ser a Primeira Guerra Mundial; depois a Segunda… Temíamos uma terceira, que seria certamente final, da era nuclear. Quantas pandemias virão? Teremos de numerá-las?
Ninguém poderia imaginar que nos confinaríamos, voluntariamente, em casa, abandonando a vida profissional, social e até familiar. Que deixaríamos de ter contacto físico uns com os outros e que as nossas relações interpessoais passariam a ser, desde agora, reguladas pelo medo do contágio e pelo distanciamento social.
Eu, privilegiado me confesso. Não me custa absolutamente nada estar em casa. Nem sequer me custa o distanciamento social, coisa que, na verdade, pratiquei toda a vida como, aliás, tenho dito um bocadinho por gozo. Mas é verdade. Não sou, nem de perto, um “people’s person”. Por natureza recatado, apreciador da solidão que me traz a minha companhia (a solidão só é boa quando é escolhida e quando aprendemos verdadeiramente a apreciar a nossa própria companhia) e a minha casa, não estou a fazer nenhum sacrifício. Com excepção da família próxima que não posso ver; da pessoa que amo, com quem não posso estar fisicamente, e de alguns amigos mais íntimos, não sinto falta de nada.
Serão, certamente, poucas as pessoas nestas condições. A maioria estará com dificuldades em se manter isolada. Respeito isso. Criámos um modelo social em que nos tornámos dependentes de estar uns com os outros. Não é um juízo de valor; é uma constatação de facto. Todo o nosso modelo social desvaloriza a capacidade de aprender a estar consigo mesmo e se foca na interacção social, aos mais diversos níveis. Pede-se agora às pessoas que se isolem, que se confinem, que se distanciem, contrariando tudo aquilo que estavam habituadas a fazer diariamente. Um caminho duro, mas necessário, contra este “inimigo invisível”.
Uma das desvantagens de viver os acontecimentos na primeira pessoa, de passar por eles, é que não se têm distanciamento. Não é possível. Porque ainda não existe. E a sociedade não existe em caixas de petri, que podemos observar, com segurança, do lado de fora. O problema é que estamos justamente dentro da caixa de petri. A viver esta experiência na primeira pessoa, uns de uma forma mais sofrida (os que adoeceram; os que perderam alguém se se poderem despedir; os que lutam para salvar vidas…), outros de forma um pouco mais ligeira, outros ainda sem compreenderem bem o que nos está a acontecer. De qualquer modo, teremos certamente histórias para contar, na primeira pessoa.
A minha curiosidade intelectual leva-me a querer imaginar como se descreverá a pandemia daqui a cem anos… Espero sinceramente que não tenha já um número, como as guerras, embora já se descrevam “vagas”. Parece mesmo ser já certo, e iminente, uma segunda vaga. Mas isso só acontecerá se aprendermos alguma coisa e, atempadamente, imprimirmos as mudanças necessárias. Por mais céptico que possa parecer, estou convicto que essas mudanças não acontecerão. Em boa parte, por causa dos políticos que temos, rodeados de (ou eles próprios) “bons funcionários”. Noutra, porque há demasiados jogos de poder em acção.
Logo nos inícios do confinamento social, dei com um documentário que explorava as possíveis causas “disto” ter acontecido. O meu primeiro pensamento foi o de considerar como se pode já estar a indagar causas se ainda estamos a tentar perceber, concretamente, o que “isto” é e como se sai daqui… Não há distanciamento de tempo, investigação, etc, etc. É impressionante a velocidade com que se criam conteúdos para a televisão. Uma das entrevistas, justamente no lugar que despertou o mundo para este problema, na cidade de Wuhan, era a um epidemiologista chinês que estava convencido que os mercados de espécies selvagens eram a raíz do problema. Deste e de outros. Se fizermos uma retrospectiva desde há mais ou menos 20 anos, vemos que foi justamente da China que vieram os diversos surtos víricos: gripe das aves, gripe A em não sei quantas estirpes, SARS, etc. A explicação parece encontrar-se na forma como funcionam os ditos mercados: espécies exóticas; animais selvagens; insectos das mais variadas ordens, em pequenas gaiolas, amontoados. Aí estão, aguardando a vez de ser comidos como acepipes culinários extravagantes ou mezinhas ancestrais, num lugar onde se vão amontoando também dejectos, desperdícios orgânicos, e uma miríade de seres humanos que aí quase vivem e aí se deslocam, por entre as gaiolas amontoadas… Numa espécie de costume tradicional inaceitável nos dias de hoje.
Claro que é sempre perigoso dizermos que determinado costume ou tradição é inaceitável… No mundo não partilhamos todos as mesmas formas de viver ou estar. E é certo que entre o ocidente e o oriente há diferenças consideráveis. Na verdade, elas existem de país para país, região para região, até mesmo cidade ou vila para a outra povoação vizinha. Não é aceitável igualmente uma forma hegemónica de considerar o que é aceitável ou não. Quem determinaria o aceitável? Ao longo da História, este erro foi cometido. Saibamos não voltar a cair nele, para não voltarmos a assistir a fogueiras em praças e “evangelizações” em massa.
Isto dito, é legítimo pensar, contudo, que haja evolução nos costumes. E nas tradições. Respeitando as diferenças, é de esperar que os povos vão evoluindo na sua forma de sentir e viver o tradicional. Da mesma forma que hoje já não aceitamos os sacrifícios humanos, os massacres em arenas ou as lutas de gladiadores, será de esperar que superemos, no conjunto das sociedades mundiais, costumes que poderão prejudicar-nos e que, por serem tão barbáricos ou desajustados da realidade que vivemos, já não deveriam fazer parte do quotidiano de vida. As touradas são, porventura, o mais flagrante costume barbárico da sociedade ocidental que teimamos em considerar uma “tradição cultural”… Mas isso é outra discussão. No Oriente, a caça à baleia, o costume de comer ossos de tigre moídos, cães, gatos, morcegos, serpentes, escorpiões e toda a espécie de coisas exóticas parece extemporâneo. E tem um preço. Considerar estas coisas tradições culturais é um anacronismo. Um sinal da teimosia humana em não evoluir. E já se disse aqui que a mudança é inevitável. Não precisaria de o dizer. É quase um axioma evidente, que desde Darwin ninguém se atreve (seriamente) a discutir. A maturidade social (e cultural) não vem só pelo humanismo. Vem também pela capacidade de nos libertarmos de costumes e formas de estar ou fazer coisas que nos prejudicam. Estes animais, que não são objectivamente comida, mas que vivem ou como animais de companhia (que nós forçámos a evoluir) ou como selvagens, transportam os seus próprios micro-organismos, da mesma forma que nós humanos transportamos os nossos. Os nossos são-nos inofensivos, podendo até ser benéficos, estabelecendo relações simbióticas ou de cooperação que nos facilitam a vida. Poderão, contudo, ser mortais para outras espécies. O contrário também se verifica. E parece ter sido este o caso… porventura, vindo dum morcego. Ou então não… Parece-me muito cedo para se dizer. Mas também me parece muito evidente que esses mercados são alfobres privilegiados para o desenvolvimento de doenças. Junte-se uma densidade populacional extremamente elevada, deficientes condições de higiene e… Booom.
Há, portanto, muito trabalho a fazer. Para conter a infecção; para sair dela e evitar novos contágios e, depois, para restabelecer a vida quotidiana. Restabelecer. Não regressar. É impossível regressar ao “normal”. Esse chamado “normal” foi precisamente uma parte do problema.
O desafio será, justamente, restabelecer a nossa quotidianidade sem cair nos mesmos erros. O esforço será enorme. A todos os níveis: sociais, económicos, financeiros, culturais. De forma de estar e viver. Passaremos a ter que adoptar verdadeiramente e sem demagogias, um estilo de vida sustentável. Outra das coisas que vai definir, a partir de agora, verdadeiramente repito (ou seja, sem ser uma bandeira de campanha), a nossa vida será a sustentabilidade. Pela primeira vez a humanidade confronta-se com um dilema: a grande maioria da sociedade, no seu conjunto, pretende um regresso à “normalidade”, o mais depressa possível, regressando aos “níveis” de anteriormente e, portanto, reinstituindo o fútil como paradigma de comportamento e pensamento mas, o que é necessário é justamente o oposto: restabelecer formas de vida em que as pessoas se possam sustentar – a vários níveis e no sentido verdadeiro da palavra – mas sem regressar aos padrões anteriores à pandemia, insustentáveis. Ou seja, sem regressarmos ao “normal”. E aqui está o desafio: vivemos o extraordinário momento em que é necessário definir um novo paradigma de vida. A sustentabilidade em vez da normalidade. A responsabilidade em vez do fútil.
Se o conseguiremos ou não, não sei dizer. A minha opinião é que não. Não para já; não depressa e não voluntariamente. Precisamente porque somos governados, mundialmente, por “bons funcionários”, pessoas habituadas a passear livros debaixo dos braços, porventura nunca lidos, movendo-se numa normalidade de aparências e interesses, pessoais ou corporativos, e focadas na sua própria sobrevivência e progressão social, económica e política. Esta “ordem” estabelecida é que fez definhar o modelo sócio-económico em que nos situamos, baseado no sacrifício de muitos para a ascensão de poucos, mas com a aparência de um sistema igualitário e justo, constantemente defraudado para favorecimento daqueles que hão-de ajudar a manter o status quo.
A situação pandémica que vivemos coloca directamente este modelo em causa. Mas a instauração em vigor não permitirá, de boa vontade, que faleça. Pelo contrário, será novamente reconstruído, para se regressar ao consumismo desenfreado, alimentado pelo crédito insustentável, de forma a garantir o rejuvenescimento do tecido económico, extremamente afectado pelo confinamento e paragem forçada.
Perder-se-á, em minha opinião, a oportunidade de uma vida e de uma geração, de transformar a sociedade em que vivemos, adoptando uma nova forma de estar. Como aliás, já se tinha perdido aquando da última grande crise financeira. Também aí se poderia ter aproveitado para a implementação de um novo modelo sócio-económico. Mas não. Agora, acontecerá igual. Baseando-nos na insuportável naiveté do “Vai tudo ficar bem” (que coisa estúpida e insensível de se dizer!), a classe política desdobrar-se-á em inúmeras reuniões para manter tudo na mesma. Sem chegar verdadeiramente a nenhum resultado, aplicará compressas de água fria, placebos de ordens várias e comprimidos de açúcar de confeiteiro, ao mesmo tempo que estabelece “linhas de crédito” insuportáveis para os Estados e para as empresas, num malicioso apelo ao endividamento como forma de recuperação da estabilização de tesouraria, sabendo que, na verdade, o que está a fazer é garantir que o sistema, o seu sistema, continuará a produzir dinheiro para os mesmos bolsos. Não haverá reformas sociais e políticas verdadeiras. Não haverá, porque não interessam. Mundialmente, não interessam. A China continuará a fazer do vírus uma oportunidade de negócio, exportando milhões de toneladas de material, de qualidade ou não (pouco importa), beneficiando da enorme massa de mão de obra virtualmente gratuita de que só os enormíssimos países que vivem em ditadura podem dispor; os Estados Unidos continuarão a viver na sua bolha ilusória de grande nação a lutar contra a China e os emigrantes, sob o discurso absurdo de um presidente que os enterra em valas comuns, mas que recolhe, ao que parece, enorme aceitação, porque o que importa é ganhar dinheiro e “make America great again”; a ONU, já completamente anacrónica, está esvaziada de qualquer poder de influência real, e a Europa continuará igual a si própria: em diferentes velocidades, com variados interesses, consoante se está no sul ou no norte, e completamente incapaz de tomar decisões de fundo. Uma máquina burocrática perfeitamente concebida, de “bons funcionários”, que foram tendo tempo e abertura para irem eliminando todos aqueles que um dia sonharam com o “projecto europeu”. Não existe união europeia. Existe uma instituição, que tomou esse nome, mas que é apenas o conjunto dos seus membros, que se degladiam em reuniões intermináveis, de “compromissos”, sem nenhum resultado prático, impondo as vontades dos países ricos, que precisam absolutamente destes “mercados” para a exportação dos seus produtos e, assim, garantir os seus excedentes orçamentais. Nos momentos de crise, completamente ineficaz, por que não é uma união, mas um conjunto de vontades. Nesta crise, como em todas as anteriores (financeira, dos migrantes…) foi, uma vez mais, completamente inútil, actuando sempre por reacção. Nunca tomando iniciativas ou antevendo problemas e propondo soluções antecipadas. Não pode propor aquilo que não tem.
Esta Europa espelha o problema das democracias ocidentais: estão velhas, delapidadas de conteúdos, tomadas por burocratas com agendas pessoais, incapazes de responder aos desafios que lhes são colocados, sejam os finaceiros, de todas a vezes que não se consegue controlar algum factor na delicada balança que é o sistema económico-financeiro em que vivemos, sejam de outra natureza como por exemplo agora esta pandemia. E assim se abre o caminho a aberrações políticas, projectos de governo absurdos, personalidades populistas vorazes (algumas provando do seu própria veneno, como em Inglaterra)… Temos cá os nossos próprios exemplos. Mas não resisto ao triste espectáculo que o Brasil se tornou. O mais eloquente exemplo de estupidez humana e incompetência política e governativa, que vai dizimando um país inteiro, alicerçado na boçalidade, sua e da massa amorfa e analfabeta que o segue, persegue e sustenta, conduzindo-os à absoluta catástrofe: “oh cara, eu não sou coveiro!”. “A guerra é muito grande para uma mente tão pequena”, de facto. Utilizo as palavras de um rapper brasileiro – de que não sei o nome – e que apanhei por acaso numa reportagem sobre a disseminação pandémica nas favelas.
Mas não é apenas a circunstância de sermos governados a nível mundial por “bons funcionários” que concorre para esta incapacidade. É também a circunstância de que nas situações de crise, e nesta em particular, precisarmos mais de líderes do que de políticos. Uma situação de crise é, por natureza, uma situação que exige liderança. Não é este o tempo da política. Esse seria mais tarde, quando se dicutissem os modelos a implementar, as reformas a fazer, as mudanças a levar a cabo. Para isso serve a política. A liderança é outra coisa: é a capacidade de – mesmo que esse líder seja político – conduzir a sociedade nos tempos de crise de modo a superá-la, com o menor dano possível. Em Portugal, felizmente, afiguram-se dois líderes. Politicamente diferentes, mas com a mesma intenção (momentânea, claro, mas no caso é o que importa): evitar que em Portugal se venha a passar o mesmo que nos países mais afectados. Falo, claro, do primeiro-ministro António Costa e do líder da oposição Rui Rio. Não poderei nunca simpatizar com o discurso neoliberal do PSD. Mas não invalida que seja, nesta circustância, um líder que colhe o meu respeito. E tem-o demonstrado. Virá certamente a ser primeiro-ministro. Concorre também que o presidente Marcelo percebeu, finalmente, o seu papel. Arredado de selfies e beijinhos, desempenha agora a figura de Chefe de Estado. Empenhados, os três, em que se possa alcançar o melhor resultado possível. E está a conseguir-se. Não sem alguns ataboalhamentos, próprios do portugalidade e da incapacidade da maior parte dos políticos perceberem o seu papel: afastados também eles dos tempos de antena, estão reduzidos à circustância da sua própria ineficácia. Mas está, de facto, a conseguir-se. O confinamento começou muito antes do estado de emergência, impulsionado por um movimento nas redes sociais colocando-se hashtags de “stayathome” a propósito e a despropósito. Será, porventura, esse uma boa parte parte do segredo do “sucesso português”. Para ele contribuiu sem dúvida, mais do que certas medidas e, sobretudo, certas atitudes, metendo as pessoas em casa.
Mesmo assim, lá vamos vendo uns arrufos. Umas tentativas de desestabilizar. Sim, haverá por certo desfazamento nos números; medidas ineficazes; falhas de material; coisas assim. O que é inaceitável é o jogo baixo dos ataques pessoais e jocozos às pessoas que dão a cara (e a inteligência) pela luta contra o vírus. O aproveitamento político é indecoroso, populista e imoral.
O mesmo se diga dos aproveitamentos políticos de presidentes de câmara, sedentos dos seus quinze minutos de fama, tentando fazer do vírus oportunidade de grangeamento de votos. Asco! Ou ainda das tentativas de instauração de polémicas opotunistas. Que feio!!! Que desprezível a palhaçada em torno das comemorações do 25 de abril.
Quando eu nasci já era livre. Não sei o que é não poder dizer o que apetece, fazer o que me apetece, criticar o que julgo merecer crítica. Abertamente, sem medo de represálias. Toda a minha vida me pude expressar como entendi. Claro, na teoria. Naquilo que é o domínio do direito. Na prática, sei bem que opinar contra a corrente e expôr o que está mal – ou a incompetência - tem um preço. Tornamo-nos indesejáveis ou desconfortáveis… Não alinhar pela bitola do instituido ou ter opinião própria não é tão bem visto como à partida se poderia pensar… Mas não importa. O que importa é que tenho esse direito. Quando nasci, já era livre e não precisei de lutar para isso. A minha luta já não é essa. A minha (da minha geração e das que virão depois) é o de manter esse direito e de lutar para que ele seja pleno. Assim, é importante comemorar a data. Fundamental mesmo.
Comemorar não é festejar. Se reduzirmos o 25 de abril a uma festa estaremos a desonrar a memória dos que lutaram para que a liberdade fosse hoje possível. Comemorar é fazer memória, é tornar presente no hoje da história o acontecimento de há 46 anos que modelou a nossa vida e transformaou a sociedade portuguesa de modo a que possamos hoje viver e ser como vivemos e somos. E ter, inclusivamente, a liberdade de discordar. Também não concordo com a forma. Poderia, eventualemnte, ter-se pensado outra, mais consentânea com as circusntâncias em que vivemos e aproveitado a ocasião para fazer também destas comemorações exemplo de comportamento a adoptar. Contudo, foi decidido democraticamente comemorar desta forma. E, justamente, na Casa da Democracia. Como, tanto quanto sabemos, a democracia é fundamental para a liberdade (como a liberdade para a democracia), importa, portanto, respeitar essa decisão. E cada um, no sossego da sua casa, comemeorar como achar oportuno. Sabendo, contudo, que na Casa da Democracia se comemorou, por todos e para todos, como democraticamente se considerou adequado. A liberdade também é isto: saber respeitar aquilo com que não se concorda. É ainda outra coisa: não procurar todas as oportunidades para aproveitamentos políticos demagógicos e, sobretudo, vis.
Não imaginámos, por certo, alguma vez confinarmo-nos voluntariamente em casa e apelarmos a plenos pulmões ao “fique em casa”, afastando-nos dos cafés, da galhofa, das bebedeiras, das noitadas, das festas, dos festivais… Tudo coisas giras, com certeza. Fúteis, no entanto. Sobretudo quando não guiadas por nenhum conteúdo que não seja o “vive o momento”, o deturpado “carpe diem”.
Não percebermos que não podemos regressar, será muito mais do que perder a oportunidade. Se não percebermos que não podemos regressar ao “normal”, pereceremos. Não apenas como sociedade. Individualmente: uma pandemia é um inimigo mortal. E se a taxa de mortalidade parece ser reduzida, o medo é real. As consequências também: físicas, de sequelas, económicas, sociais… Não imaginámos, por certo, alguma vez ter de vir a abster-nos dos abraços de quem gostamos, dos beijos e da presença de conforto dos que amamos. Porventura, esta falta é a mais dolorosa: da pessoa que amamos, se ficou longe.
Possam estes sacrifícios não ser em vão. Possam estes tempos ser mais do que uma vontade fútil de normalidade. Possam não ser postos em causa os sacrifícios de tantos que se arriscam pela saúde dos demais.
Precisamos de restabelecer a nossa vida. Mas não a podemos retomar, sem mais. É este o momento de dizer basta aos passeadores de livros. De responsabilizar os políticos, obrigando-os a trabalhar, verdadeiramente, pelo bem comum.
Não é um caminho fácil. Mas não me parece que haja outro. A não ser que nos tornemos todos “bons funcionários”. Retoremos a vida e caminharemos, decididamente, rumo ao abismo. E, talvez, na próxima pandemia acordemos.
Afinal, é o fútil que melhor descreve o nosso tempo. Mais que o Vazio. Já passámos o tempo do vazio.

Deambulações correntes I. Do fútil, ou o princípio de Peter


Se há coisa que pode caracterizar o nosso tempo é o fútil. Desenvolvemos, nas últimas décadas, uma inusitada capacidade para nos ocuparmos do fútil.
Quando eu era estudante universitário estava em voga “A Era do Vazio”, de Lipovetski. Não havia aluno que se prezasse que o não tivesse lido – ou fingido ler. Andava nas mãos de toda a gente. É assim em todas as gerações: há sempre livros ou ideias que estão na moda. Do mesmo modo que faz parte do “percurso” de um universitário determinadas ideias ou correntes que, depois, se espera que venha a abandonar ou, então, a abraçar seriamente. Um dos meus mais notáveis professores, dizia-nos que se durante o tempo na universidade não fôssemos comunistas pelo menos durante um semestre, não tínhamos entendido nada do que se vai fazer a uma universidade. Depois, naturalmente, era suposto que essa “fase” passasse. Claro… a alguns não passou.
O que ele queria dizer, naturalmente, é que faz parte do percurso de vida o abraçar de ideais, experimentar causas, pôr em dúvida axiomas… E nenhuma altura na vida é mais propícia do que aquela em que estamos na universidade. Ele era assim. Um homem de afirmações apodíticas, que nos apresentava aquelas coisas como se nos falasse de um pedestal conferido pelo intelecto, dando-nos a impressão – sem nunca o dizer – que ele próprio tinha experimentado aqueles patamares que se esperava, agora, que nós experimentássemos. Nenhum de nós se atrevia a fazer a pergunta. Ouvíamos a excentricidade intelectual de um homem que nos apresentava a universidade como um tempo de realização e construção da nossa própria intelectualidade – e humanidade. Em suma, que nos havia de dar as ferramentas para pensarmos pela nossa própria cabeça. Mas para tanto, é necessário primeiro saber o que pensam os outros: ler, estudar, investigar, para depois, pelo raciocínio, desmontar esses ideários, de forma a chegar ao nosso próprio pensamento. Dá trabalho. Mas estou-lhe grato por essa insistência.
Um dia, um diligente colega apareceu na aula com “A Era” debaixo do braço. Rapidamente divergiu para o Vazio, e para a necessidade de ler o livro, mais do que passeá-lo. A ele pouco lhe importava que passeassem livros. Via, há décadas, estudantes a passeá-los para os professores verem. Irritava-se com isso. Essas pessoas, nulidades intelectuais no seu entender, tinham depois, vida fora, uma inacreditável facilidade em vingar em bons empregos: tinham desenvolvido a ciência de parecer (mesmo não sendo) aplicados, competentes, meritórios. Desenvolviam-na desde a faculdade, – provavelmente já desde antes! -  mostrando mais o que pareciam fazer do que aquilo que realmente faziam. Sempre muito muito atarefados, e sempre sempre com os livros certos debaixo do braço. A isto, chamava-lhe ele o “manual do bom funcionário”. E era o início, para muitos, duma fulgurante carreira que, não raras vezes, passava por uma associação qualquer (se de estudantes, melhor), para depois se dar o salto para uma filiação partidária e uma “jota”. Criavam-se, assim, na minha geração universitária, os futuros – hoje presentes – políticos.
E assim, ante os nossos inexperientes olhos de jovens universitários, da forma aparentemente mais natural possível, se desenhava a aplicação do princípio de Peter. É simples: qualquer funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência. Quer dizer, muitas vezes as pessoas, competentes em determinadas matérias, que desenvolvem com mérito, são depois, fruto desse mesmo desempenho, promovidas ou nomeadas para desempenhar funções em matérias para as quais são completamente incompetentes. Poderíamos citar muitos exemplos (os clássicos são Macbeth, general competente, mas um rei incapaz; Sócrates um excepcional filósofo, mas um péssimo advogado de defesa, etc), mas escuso-me de o fazer: basta pensarmos no nosso sistema político. Sobejarão os exemplos, e não é deles que me quero ocupar.
Este princípio parece-se aliar-se com uma grande facilidade à arte de parecer fazer bem. Dito doutra forma, assumindo como verdadeiro o princípio de Peter - é discutível, como se percebe – pode facilmente ter-se sucesso, apresentando uma aparente dedicação mesmo quando se é incompetente. Basta, assim, parecer sempre muito atarefado, dizer sempre as coisas que se espera que se digam, comportar-se com uma certa subserviência para com as chefias, acatando sempre e elogiando ainda mais, enfim, passeando os livros certos debaixo do braço. O resultado deste afã, será nulo. Perfeitamente nulo, mas perfeitamente útil para o “bom funcionário”. Naturalmente, acresce uma imperiosa necessidade de assumir como verdadeiro inimigo aquele que é meritoriamente competente: é que a competência tem, entre outras, a extraordinária virtude de expor a incompetência. Já se vê o perigo: alguém verdadeiramente competente no seu trabalho acaba inevitavelmente por expor a incompetência ou a ineficácia alheia. Será, portanto, um alvo a abater por todo e qualquer “bom funcionário”, que vive daquilo que aparenta conseguir fazer, sempre muito atarefado sem, contudo, produzir nada.
Alia-se igualmente ao fútil, razão pela qual vemos tantos “bons funcionários”. É que o fútil (o contrário de útil) valoriza justamente o superficial, o parecer ser/fazer, tão determinante na ascensão dos “bons funcionários”. E se há coisa que pode caracterizar o nosso tempo, é o fútil. Mais que o vazio. Estamos para além do vazio.
Não me vou entreter a fazer uma hermenêutica da “Era do Vazio”. Não precisa. Já passámos o tempo do esvaziamento de conteúdos e significados – fútil: literalmente, o que deixa escapar o que contém. É certo que a revolução social da década de sessenta (e a seguir) transformou, não só por completo mas também definitivamente, a sociedade em que vivemos. Esvaziaram-se de sentido conceitos e ideais velhos, desadequados e desajustados, incapazes já de dar resposta às questões do íntimo humano. De acompanhar um homem que queria mais. Sobretudo de si mesmo. Que se voltava para novos valores, empurrados pelo consumo e pelos movimentos pós-modernos, centrados no autoconhecimento, no sentimento do Eu, no culto do corpo, na procura do erotismo… Enfim, todos esses conceitos que modelaram muito do que hoje somos.
Aspirava-se por mudança, sendo que a sociedade instituída teimosamente a não oferecia. Mas a mudança é inevitável. “Todo o mundo é composto de mudança” e é ela a força motriz do mundo. Lamentavelmente, porém, no frémito de esvaziar tudo aquilo que peava uma sociedade nova, ninguém se lembrou do movimento subsequente: instituir novos valores, novos ideários, novas barreiras sociais… Assim, retiraram-se do quotidiano determinadas formas de estar sem serem oferecidas à sociedade outras. Inebriou-se a sociedade com uma ilusória liberdade, que se traduz, acima de tudo, num culto do fútil. Moralmente asséptica, ou simplesmente amoral, foi-se desenhando uma sociedade estranha e onde impera o que se vê e a forma como se vê.
Valores humanistas foram paulatinamente sendo propostos; projectos de mais e maior solidariedade foram nascendo; novas formas de organização das nações foram tomando forma… A Era do Vazio encheu-se de boas intenções, governada por pessoas perfeitamente incompetentes e centradas no fútil aparente.
Não parece que caminhamos para um abismo, sem retorno?
Pois parece. A sociedade em que vivemos, a nossa sociedade (que todos e cada um fazemos e, portanto, todos co-responsáveis, em maior ou menor medida), é completamente incapaz de olhar para fora de si mesma. Ou seja, incapaz completamente de parar. De reflectir antes de agir. Em nome de um insustentável progresso, que tem de ser sempre contínuo (reparem que o contrário de progresso é regresso - e ninguém quer andar para trás!), sempre em crescendo, sempre para mais, a sociedade não reflecte nas consequências. E embarcou num percurso autofágico, engolindo tudo e todos, destruindo tudo à sua volta. Inclusivé o planeta, sendo que não temos outro... Há, portanto, uma irremediável incapacidade para reflectir e parar.
Li, há já algum tempo, um admirável artigo que, lamentavelmente, perdi (mais uma consequência de termos tudo online) sobre a proposta de adoptar um novo paradigma económico: em vez de progresso, retrocesso. Quer dizer, desacelerar, para níveis comportáveis. Naturalmente, não é uma proposta com sucesso.
Extraordinariamente, porém, é justamente nesse patamar que estamos hoje. Algo de profético, poderia dizer-se. Uma mente racional dirá somente que era inevitável que, mais tarde ou mais cedo, fosse necessário parar. Mesmo que isso não tinha sido voluntário, nem por causa das preocupações com o planeta nem, tão-pouco, porque finalmente se compreendeu a necessidade de um paradigma económico, novo, que seja sustentável. Foi, de forma brutal, pela circunstância do medo.
Se há coisa que caracteriza o nosso tempo é o fútil. Uma sociedade baseada no fútil é sempre frágil. E, portanto, quando entra em crise, o medo ganha. Como não será, então, quando nos vemos a braços com uma pandemia que ameaça o nosso estilo de vida e vai obrigar, forçosamente, à redefinição de tudo aquilo que julgamos saber e estávamos habituados a fazer?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O esqueleto cantante e os beijos à porta

      Há qualquer coisa de extraordinário no espaço confinado de um autocarro, com cinquenta pessoas (mais coisa, menos coisa), com cinquenta histórias (mais coisa, menos coisa) diferentes. Para um solitário, que escreve, é importante ver pessoas, seja no autocarro, no metro, nas ruas... tomar parte nesses banhos de realidade concreta diária, como espectador atento da realidade humana, afastando-me da contemplação solitária imanente da minha vida. De outro modo, sobre o que escreveria? Sobre a beleza das folhas que caem, ou da brisa gélida e elegante que molda o inverno?... Pois sim, isso é belo. Mas só há um tanto sobre o que se pode escrever acerca de folhas caídas ou brisas gélidas. Depois esgota-se. E, além disso, que posso eu escrever que acrescente novidade a odes preciosas já escritas, sobre folhas caídas ou brisas de inverno, quando tantos, com tanta mestria, já o escreveram. Poderia certamente reinventá-lo, pois escrever também é isso. Mas só há um tanto sobre o que pode ser escrito acerca dessas coisas. Não... Preciso da paleta humana. Desses banhos de realidade concreta que me fazem pensar e humildemente esperar que as palavras queiram ser escritas. Portanto, não há melhor maneira do que meter-me pelas ruas fora, mais ainda nesta época de correrias desatentas, mas naturais, porque reflexo do mais puro alheamento do humano, ou simplesmente entrar num autocarro ou no metro.
Atrás de mim uma rapariga lamentava-se ao telefone, numa típica crise do fim da adolescência, falando como se estivesse sozinha com a amiga interlocutora com quem desabafava, no recato duma sala ou dum quarto, dos desamores frustados de uma investida de um “amigo” que, depois de uma noite de copos sugeriu saírem da discoteca para irem para outra zona de bares e que, cá fora, a tentou beijar. Ela não quis. Parece que ainda estava magoada doutra experiência atrasada. E voltou a fugir para a discoteca, gorando as expectativas do amigo, a quem ela insistia em dar o nome, ante aquele auditório de cinquenta pessoas, mais coisa, menos coisa. Claro, talvez nem todos estivessem atentos ou sequer interessados. Olhei em redor: nas imediações do meu assento, que era o auditório mais próximo desta conversa, todos olhavam compenetradamente para o ecrán do smartphone. Uns bancos mais à frente, viam um filme no portátil. Todos perfeitamente alheados. Lembrei-me imediatamente do “Pensatório”, do Harry Potter, onde as pessoas mergulham (literalmente) nas suas memórias (ou de outros, desde que metidas em convenientes frasquinhos), deixando para trás – mesmo que por momentos – a realidade concreta. A seguir, outra chamada, para comentar o episódio de choro na aula duma colega, a braços com um luto. Percebi perfeitamente. Há assuntos que, num processo de luto, despoletam marés de emoções. A professora também se comoveu, ela própria em luto. Rapidamente tudo chorava e se descontrolou a aula, que acabou mais cedo. Depois disto, o mesmo episódio da discoteca e da tentativa de beijos do amigo, que ela acabou por encontrar no dia seguinte e fez de conta que não viu. Foi melhor assim. “Não estás bem a sentir, estou mesmo mal”. Se pela noitada, pela ressaca e falta de dormir, se pelo beijo frustrado (que ela queria mas não queria), acabei por não perceber. Mais tarde, nova conversa, com a amiga enlutada,
“então, como estás?”

“Claro... E já não vais sair, ficas por casa? Pois, fazes bem”. Novamente a história do amigo e do beijo. “Mas se precisares da alguma coisa liga, sim?”
No espaço duma viagem, a história da noitada, da tentativa de beijo do amigo, da sua fuga de volta para a aparente segurança na discoteca e as aulas do dia seguinte foi contada e recontada. Como se estivesse sozinha com a(s) interlocutora(s) no espaço recatado dum quarto ou duma sala, ou até duma discreta mesa de café onde se pode falar sossegadamente... Também há qualquer coisa de extraordinário no espaço duma mesa de café, como se houvesse ali uma pequena redoma que nos encerra num mundo. E foi natural, como se não estivessem ali cinquenta pessoas, mais coisa, menos coisa. Como se estivesse sozinha. Ou então, talvez estivesse, apenas com os meus indiscretos ouvidos, e todos os outros mergulhados nas suas redomas de ecrán brilhante.
Fiquei a pensar como seria a vida daquela estudante universitária e como espelhará a vida de todos os estudantes universitários. Fiquei a pensar como se pode viver a vida tão despreocupadamente, sem ter noção do real e concreto valor das coisas, reduzindo o final da adolescência, o início da idade adulta e a experiência da faculdade a noitadas, copos e tentativas de beijos. E em como, a seguir a isso se vai para as aulas... Depois considerei que nós, adultos, vivemos a nossa vida igualmente despreocupados, olhando para “pensatórios” de alheamento da realidade concreta. Jamais entenderei a necessidade de noitadas e copos. Ainda menos o considerar-se isso divertimento. Mas também não consigo entender completamente a necessidade de constantemente nos alhearmos da realidade e deixarmos os nossos smartphones governar a nossa vida.
Se bem que, às vezes, é necessário um tanto de alheamento. Como de folhas caídas e brisas gélidas.
Apesar da proximidade do Natal, o sol nas ruas é agradável. Quase que se podem dispensar os casacos pesadões, as luvas, cachecóis e gorros. Pelo menos durante o dia. Passeando despreocupadamente, atento nas pessoas, em correria, sempre, nas decorações de natal, nas montras, na música nas ruas... Que bom o anonimato de passear despreocupadamente nas ruas cheias e , apesar disso, sem ninguém conhecido. Este pequeno conforto que só cidades grandes podem dar. Fui passando de rua em rua, admirando mais as decorações que as gentes, até deparar com os habituais grupos que se juntam em torno dos artistas de rua. Alguém fazia pinturas estranhas com sprays de cheiros também estranhos e combinações ainda mais esquisitas. Sentado no chão, uma roda de admiradores ia crescendo à medida que as pessoas passavam, muitas apenas curiosas, como eu, outras ficando um bocadinho, na admiração daquela arte de manchas psicadélicas, mais coisa, menos coisa. Não faço ideia se isso se iria traduzir em dinheiro na caixa despreocupadamente pousada ao lado, mas garantidamente debaixo de olho. Mais abaixo, uma figura envolta num lençol azul petróleo pairava no ar, sem nada de aparente que a sustentasse, para deleite dos passeantes. Noutra rua, um performer, já de certa idade, dava vida a um esqueleto cantante, que abria e fechava as mandíbulas ao som duma música barulhenta, encetando uma dança desengonçada, tal qual a sua própria condição de esqueleto, ainda que animado por cordéis.
A necessidade duma cadeira aliou-se à vontade duma bebida quente, o que me fez entrar numa cafeteria, de conceito demasiado americano para conseguirmos compreender tudo aquilo que se elenca nos preçários. Ainda assim, um espaço razoavelmente agradável, onde estar sozinho não parece estranho a ninguém, porque ninguém sequer repara, e se estivermos dispostos a abstrair-nos do corropio circundante. Um chocolate quente com uma nota de avelãs, desfigurado por natas de uma lata, que já não consegui impedir a tempo, e que o fez ficar enjoativo. Embora me tenha perguntado, e eu tenha dito um mecânico “sim”, antes mesmo de perceber exactamente o que me perguntava, por tão absorto na observação do ritual que aquela cafetaria implica.
“Obrigado... já chega”,
disse eu,
ante a surpresa do funcionário, que ainda mal tinha esguichado a lata. Os guardanapos muito bem arrumados numa mesa à parte; noutro compartimento, finas espátulas de madeira para se agitarem as bebidas... E ali toda a gente vem, enquanto se aguarda que nos chamem pelo nome – uma americanice possidónia que toda a gente parece achar normal – e nos entreguem copos com os nossos nomes escritos. É fácil ver quem são os solitários, os desajustados, os turistas, os nacionais, os geeks, os nerds, os populares, com um séquito de admiradores que se inebriam da luz que deles se desprende... Ali, todos os nichos entram, sem se misturarem, ainda no estrito cumprimento daquele ritual. Como noutros sítios, naturalmente. Mas ali tudo se faz num hino de louvor à marca, presente em todos os cantos e em todas as coisas, auto-elogiando-se a si própria em pequenos textos e constatação de feitos, num verdadeiro culto de si mesma: prémios disto e daquilo; metas alcançadas; x milhões de tal; x percentagem de reciclagem; tantas árvores salvas...
Lá fora a música de natal continuava ininterrupta. Levantou-se um vento gelado, próprio do fim dos dias no inverno. O esqueleto cantante já tinha desaparecido. A multidão nas ruas era mais fluída à medida que o sol desaparecia e ficava frio. As decorações de natal impuseram também o seu ritual próprio de festa. Há qualquer coisa de igualmente extraordinário nas decorações de natal e no seu ritual.
Na viagem de regresso, entretive-me no deslumbramento duma figura extraordinária. Não sei se o era, realmente, ou se simplesmente a mim me parecia que fosse, na solidão que escolhi para viver. A solidão também ela pode ser extraordinária, sobretudo quando se escolhe e não é imposta. Da rapariga dos beijos roubados, nem rasto. Esse encontro fortuito, porventura irrepetível, foi revelador dum universo paralelo ao meu, e que eu jamais entenderei ou pertencerei. É de igual modo extraordinário como as nossas escolhas de vida definem o nosso próprio universo e moldam a nossa existência, mais coisa, menos coisa. Apercebemo-nos disso em pormenores pequenos, que se estivermos desatentos, não damos por eles. Surgem em pequenas redomas extraordinárias da existência.
Acordei desse torpor para voltar ao conforto da vida que me é familiar. Enfim em casa, sem auditórios indiscretos. Mesmo que seja o do confinamento dum autocarro, ou duma pequena mesinha de café. Lá fora o vento é gélido e as folhas das árvores, já quase nuas, são sopradas com certa inclemência, própria do tempo. Está bem assim, tudo no seu tempo. O frio, o gelo, as folhas caídas, os beijos roubados à porta duma discoteca.
Feliz Natal.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

O estranho caso dum buraco no chão ou a política de casos

Diz-se da avestruz que quando se assusta ou pressente perigo enterra a cabeça na areia. Parece, no entanto, que isto não é verdade, mas é daqui que vem a expressão que todos associamos a um certo acto de cobardia ante as dificuldades ou, então, a um fazer-de-conta que passa se eu fizer de conta que não vejo.
Há buracos, contudo, que são muito maiores do que as cabeças ou que é impossível não ver. Tal como há buracos que o não são. Quem nunca ouviu falar das impressionantes ilusões de óptica pintadas no chão, que quase parece que vamos cair num precipício quando, afinal, é apenas tinta? Porventura terá sido este o caso do incauto visitante, na exposição de Anish Kapoor, em Serralves que, apreciando a obra, caiu no buraco. Uma verdadeira “descida para o limbo”, assim se chama a peça que o visitante admirava e nela caiu.
Confesso que a minha relação com a arte contemporânea é difícil. Custa-me muito apreciá-la, talvez por ser mais dado aos grandes mestres do Renascimento e do Barroco. Talvez por não compreender o génio artístico (o que é muito provável. Não compreendo mesmo). Suponho que até os grandes mestres, na sua época, foram incompreendidos. Provavelmente, daqui a centos de anos, a arte hoje contemporânea será reverenciada por muitos e não apenas por um restrito grupo de eleitos que se deleita na contemplação de buracos no chão, ou outras peças de igual gabarito. Lembro-me de estar uma vez no Reijksmuseum de Amesterdão, no último piso dedicado à arte contemporânea e estar muita gente de roda duma vitrina que não tinha nada, apenas os contornos de qualquer coisa. Uma dúzia de asiáticos comentava e tirava fotos. Parecia que estavam a apreciar maravilhados os contornos de qualquer coisa e isso era um epíteto da contemporaneidade. Aproximei-me mais, na tentativa de encontrar, eu próprio, qualquer satisfação na fruição do que lá estaria (nada, para mim). Levantando os olhos para fora da vitrina, na parede, estava uma pequena placa, onde se lia: “Peça retirada para estudo”. Ninguém pareceu notá-la. Eu sorri, os asiáticos, que entretanto tinham atraído mais uns quantos turistas à vitrina, continuaram a tirar fotos, e eu prossegui na minha visita. A arte está nos olhos de quem vê, portanto. Um bocadinho como as polémicas, ou os buracos no chão. Para uns uma ilusão sendo verdade, para outros uma verdade sendo ilusão. Uns empolgando-os; outros desprezando-os.
Nem todos os buracos no chão são de desprezar, note-se. Em Tolkien, por exemplo, “num buraco no chão vivia um hobbit”. E daí nasceu uma obra-prima, conhecida de todos. Tal como o de Serralves, amado por muitos, menosprezado por alguns. A ninguém, contudo, é indiferente. Os buracos verdadeiros tendem a não deixar as pessoas indiferentes. Mesmo que sejam reais só literariamente.
De facto, a arte de empolgar coisas parece estar na moda. Enquanto em Serralves se cai em buracos, julgando-os ilusórios, pelo país fora espreitam oportunistas da ilusão. Coisa triste haver pessoas cuja estratégia de vida é a ilusão. Como, por exemplo, o fazer-se de conta que se é importante ou que se tem muito a dizer ou se detém todas as soluções... Claro, todos temos certas soluções, certas coisas importantes a dizer, certo peso ou importância. Cada um no seu espaço relativo. No seu mundo, se quisermos. E, claro, todos vemos e apontamos com muito mais facilidade o que está mal. Apontar o dedo é muito fácil. Tanto mais fácil quanto não nos comprometemos ou fazemos de conta que nada daquilo é connosco. Meros espectadores, como a ver buracos pintados no chão. Esta atitude é tanto mais grave quanto maior é o grau de responsabilidade da pessoa na sociedade. Cria-se aqui um ciclo nefasto: alguém pretende ser importante, apontando o dedo aos defeitos, todos e qualquer um, mesmo aqueles que são apenas aparências de erro, mas nunca apresentando soluções que vão além do senso comum ou daquilo que é fácil. Pretende-se ganhar importância à custa dos problemas alheios, fazendo com eles um jogo triste, ao mesmo tempo que se desresponsabiliza e demarca completamente, como se vivendo noutra realidade e dando a sim mesmo, perante os outros, uma aparência de saber fazer melhor, mesmo que isso não seja verdade. Chama-se a isto populismo. Poder-se-á defini-lo com outras palavras, naturalmente. Mas na sua essência, é isto. E é perigoso. Muito perigoso. Joga com as fragilidades das pessoas; aproveita os desaires alheios; empolga todo e qualquer deslize dos adversários, mesmo aqueles que não têm nenhum significado ou se vêem a provar falsos; agita as massas e toma como suas causas que sabe, à partida serem impossíveis ou pouco viáveis, mesmo que anteriormente tenho sido absolutamente contra elas... E tudo para subir à conta dos outros, disfarçando a sua própria incapacidade, canalizando ao seu redor o desencanto alheio e moldando a opinião dos outros a seu proveito, muitas vezes sem qualquer estratégia para fazer melhor. Transportemos isto para a política e facilmente se percebe o perigo. E, no entanto, isto acontece a olhos vistos, disfarçadamente, impondo-se como um discurso sério. Acontece no presente do nosso País, à escala nacional e à escala local. Quantos Presidentes de Câmara (com maior ou menor mérito, diga-se) contam com uma oposição deste tipo nas suas terras? Estranhamente, uma parte significativa das pessoas considera esta forma de actuar válida. Pior, muitos políticos (ao nível nacional e local) fazem desta forma de actuar a sua própria estratégia quando, na verdade, não é estratégia nenhuma! Uma política de casos, sem quaisquer soluções que não seja apenas o desgaste para forçar as pessoas ao desagrado. A arte da ilusão posta em prática. É fácil. Há muita gente a servir-se de buracos pintados no chão e a prometer às pessoas que vão cair neles, sabendo que, de verdade, são apenas tinta no chão. Contudo, convém sempre saber onde está a realidade e a ilusão, sobretudo no que toca a votos e a estratégias políticas. Não vá o feitiço voltar-se contra o feiticeiro e esses engenhosos obreiros do populismo acabarem por cair, eles próprios, no buraco com que andaram a amedrontar os outros. A ilusão tem destas coisas às vezes. Que o diga o visitante de Serralves.
Há solução para o populismo? Podemos evitar a política de casos? Certamente que sim. Não poderei eu arvorar-me na condição de ter a solução. Mas tenho uma solução. Desde logo, a consciencialização/educação/responsabilização das pessoas. A aposta no seu esclarecimento, em vez de alimentar a sua preguiça intelectual natural. Reparemos, por exemplo, nas notícias. Um exemplo banal do quotidiano. Num bloco noticiário, quanto tempo se dedica às notícias (factuais) e quanto tempo é dedicado ao seu comentário (interpretação)? Temos telejornais a demorarem horas, porque a maior parte desse tempo é dedicado a comentar as notícias, não a apresentá-las. Já lá vai o tempo em que os noticiários eram de notícias, ou seja, o jornalista limitava-se a apresentar a notícia factual sem a comentar ou a fazer sobre ela qualquer juízo. Competia a quem ouvia/via interpretá-la para si próprio. Hoje, não só isso não acontece, como o próprio jornalista que apresenta a notícia factual tem já sobre ela uma determinada carga, às vezes impercetível (o acentuar de um determinado número ou percentagem; a entoação da voz; um simples torcer de cabeça...) outras mais visível, socorrendo-se de uma bateria de comentadores que, expressando cada um a sua opinião, de acordo com as suas próprias tendências (ninguém é acepticamente imparcial; isso não existe: o homem é ele e a sua circunstância), mesmo que inadvertidamente ou sem essa intenção específica, vão fazendo correntes de opinião, ao mesmo tempo que se dá o fenómeno concomitante das pessoas deixarem de pensar por si para adoptarem as formas de pensar dos comentadores da sua predileção.
Isto acontece por duas razões principais, a par de uma quantidade de outras, que apenas reforçam estas: a “revolução” social que levou ao abandono dos parâmetros de vida tradicionais trouxe também uma certa preguiça intelectual, que entronca no vazio contemporâneo; ao mesmo tempo que os media, eles próprios a braços com uma autêntica revolução de parâmetros, descobriram a predisposição e o gosto das pessoas pelo reality show, preferindo que a informação seja “mastigada” e apresentada como se fosse um espectáculo. Daí a empolgar toda e qualquer notícia, por vezes até ao extremo do ridículo, procurando alimentar esta sede do espectacular, foi um pequeno passo. É isto que se passa com os chamados “casos”: coisas pequenas, muitas delas sem qualquer significado, ou então decorrentes de erros, que em circunstâncias normais seriam lidados com rapidez e eficácia, arrastadas e exploradas à saciedade, empolgando-os muito além do seu contexto concreto, sem olhar, tantas vezes, a consequências. Moldar a opinião pública à custa destes “casos” tornou-se banal, ao mesmo tempo que se apresentam e exploram circunstâncias da vida das pessoas como se fossem verdadeiros espectáculos, que prendem aos ecráns os espectadores. Acredite-se, ou não, este é um campo fértil ao populismo. E cresce. Crescerá enquanto houver audiência e enquanto houver oportunistas da desgraça.
Às vezes gostava de poder resolver as coisas com a facilidade com se podem resolver os buracos pintados no chão. Ou com a facilidade com que se podem resolver dilemas a 10 euros... Há dias, vi no facebook (esse monstruoso espelho da nossa contemporaneidade) um anúncio que dizia: “Dois dilemas, 10 euros”, fazendo reclame à pagina de um qualquer profissional das coisas ocultas. Não sei como lhe chamar, lamento. Charlatão seria deselegante. E, pois, se há quem acredite que se podem resolver dois dilemas, duma penada, apenas pela consulta de cartas ou outra coisa do género, porque é que não há-se haver quem lucre com isso? Em terra de cegos... Os políticos de casos vão fazendo mais ou menos o mesmo e ninguém estranha. Fosse tudo assim tão fácil. Eu poria como dilemas a consciencialização das pessoas e a estupidez humana. Dava dez euros de bom grado. Em todo o caso, sempre é mais genuíno o negócio das fraldas para galinhas. A mim parece-me muito mais legítimo. Chama-se aproveitar nichos de negócio: se passámos dos cães e gatos, de que eu dilecto amante me confesso, para galinhas por animal de companhia, porque não havemos de as ter limpas e bem-comportadas? Já se sabe, as galinhas são estúpidas, quando comparadas com padrões humanos (outro erro). É da sua natureza. Elas querem lá saber se cagam o sofá ou o corredor da sala, enquanto debicam o chão da cozinha... Querem é tratar da sua vida. Se as queremos na nossa, dentro de casa, pois, que haja fraldas. Alguém percebeu isso, em Inglaterra. E está a ganhar muito dinheiro, indiferente aos buracos no chão. Esperemos que não se passe para avestruzes. Não haverão fraldas que aguentem. Nem buracos.
Da próxima vez que for a Serralves hei-se ver bem onde ponho os pés.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

saudades utópicas

Não digas que tens saudades minhas, se soubeste sempre onde me encontrar. Surgiu-me assim, num rompante, enquanto deslizava o dedo no feed das redes sociais. Quando voltei para trás para ler melhor, já tinha actualizado e já não o tornei a ver. Impressionante o conjunto de coisas que nos habituamos a fazer diariamente. Passar o dedo no telefone é uma delas (sendo “telefone” aqui claramente um termo genérico para aqueles aparelhos de que nos tornámos todos dependentes; há muito tempo que os telefones deixaram de ser telefones). Dissessem-me que bastaria andar com o dedo para cima e para baixo no ecrán dum telefone para saber do mundo, em tempo real, e eu rir-me-ia. E, no entanto, aqui estamos, nessa realidade muito real, sem nada de alternativo ou utópico, cheios de possibilidades e estrangeirismos e de palavras inventadas ao sabor da velocidade a que anda o mundo virtual. Palavras que nunca suspeitámos que pudéssemos usar ou mesmo virem a existir.
Talvez não tenha sido exactamente assim, com aquelas palavras concretas, a citação, mas foi assim que me ficou, num dos milhentos posts que as pessoas vão colocando com dizeres mais ou menos giros, “citações”, às vezes de coisa nenhuma ou de ninguém, mas que passam por bocadilhos de sabedoria universal, que vamos engolindo a goles sôfregos, sedentos que andamos de qualquer coisa mais do que passar o dedo para cima e para baixo, diariamente, no ecrán de um telefone. Como se essas frasesinhas, muitas vezes inventadas e atribuídas a algum nome sonante, para se lhe dar autoridade, ou então genuínas mas perfeitamente desenraizadas e retiradas do seu contexto, pudessem mitigar a nossa sede real de sentido.
Ao mesmo tempo que sabemos todas as coisas do mundo em tempo real, vivemos em desencontro constante e permanente, estabelecendo laços virtuais raramente reais e muitas vezes alicerçados em noções platónicas, tecidas por detrás do ecrán dum telefone, sem nunca nos deixarmos conquistar verdadeiramente. Depois, se insistirmos muito, lá acontece levar ao real concreto essa relação, às vezes de anos, outras vezes fugaz, mas sempre virtual e construída de ideais aparentes. E amiúde é novo desencanto, porque o real concreto não se compadece dos beneplácitos virtuais, nem é nunca perfeito como nos aparecem aqueles fragmentos, nem a pessoa toda inteira cabe no ecrán dum telefone, por mais que se lá tente meter o mundo em tempo real. Mas a pessoa é ela própria um mundo e, portanto, são muitos os mundos para acompanhar em tempo real. Alguns, terão de ficar por explorar.
Não digas que tens saudades minhas. Estive sempre aqui, muito além do dedo a andar para cima e para baixo no ecrán dum telefone. Sempre aqui, muito além da ideia engraçada de te moldares aos meus gostos, como que a meteres-te no telefone do meu mundo, a tomares-lhe a forma para me agradar e eu dizer “sim, sim, és mesmo tu; onde tens andando, que me fartei de andar com o dedo para cima e para baixo, no ecrán dum telefone, como que à tua procura e tu, aí, perfeito, à minha espera?” Ou então, citar-te Sophia e dizer-te que “és tu a Primavera que eu esperava”... Eu, tão estúpido, basbaque num ecrán de telefone, contigo aí à espera. E tu moldando-te cada vez mais ao ecrán do meu mundo, para me apareceres cada dia mais perfeito e esperado, como uma panaceia messiânica ou um bálsamo na aridez do ecrán do telefone dos meus dias. Quando, depois, me permiti regar a aridez do ecrán do telefone dos meus dias com o remédio miraculoso do teu ser, percebeste o erro: não se pode conquistar alguém enganando-nos a nós mesmos. Porque depois, quando conquistamos assim, a pessoa rega-se nessa panaceia e floresce, enquanto que nós, que nos moldámos a um mundo que não era o nosso, para caber no ecrán desse telefone, cada vez mais definhamos e secamos, a ponto de nos morrerem as raízes. Então tiveste de desistir. Atabalhoadamente. Arruinando por completo o mundo que via no ecrán do telefone, sem remédio possível. Nestas coisas não se pode desfazer. Porque a consolação de olhar o mundo pelo ecrán do telefone, deleitando-nos em ideias de perfeição parciais, apenas com o passar do dedo para cima e para baixo, uma vez desfeita, não volta a refazer-se. E a conquista suada de uma paz interior relativa e de aceitação dos desencontros como realidade factual, na miríade de mundos que nos chegam pelo ecrán do telefone, fica em ruínas, levando muito tempo para se poder reparar.
Não digas que tens saudades. Estive sempre aqui, e tu apenas te moldas-te, sem nunca quereres realmente ser, o mundo no ecrán do meu telefone. Soubeste sempre onde me encontrar, porque avidamente vou passando o dedo para cima e para baixo, como um puzzle incompleto, na expectativa permanente da peça em falta. Perdida, porém, lamentavelmente. O mundo virtual em que nos votámos a viver fez-nos cativos dos desencontros e da insatisfação constante. Porque cada pessoa é ela própria um mundo, muito além do que esperamos poder meter no ecrán do telefone. Alguns, ficarão inevitavelmente por explorar.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Particularmente saboroso?

Aprendi há muito que não se escreve a quente sobre assuntos que nos incomodam ou de algum modo nos tocam, a não ser como desabafo e, nesse caso, não são coisas para partilhar. São coisas em chorrilho, muitas vezes incorrectas ou incompletas ou mal escritas; escritas com o propósito único de nos aliviar. Quando queremos escrever sobre alguma coisa convém deixarmos passar o calor do momento, a erupção de emoções ou a fúria que nos move, sobretudo se queremos partilhar o que escrevemos e, mais ainda, se queremos que alguém entenda o que escrevemos. Estando o ano a começar, é tempo de olhar para trás, para o ano findo, seja como balanço seja lá como se lhe quiser chamar. Para mim, o fim do ano e o início de outro é sempre tempo de reflexão.
O ano foi amargo, agora que já chegou ao fim. “Particularmente saboroso” (nas palavras do nosso Primeiro-Ministro), decerto, em muitos aspectos da nossa vida comum de País. As melhorias económicas, traduzidas em melhorias sociais; uma estabilidade política mais ou menos conseguida; boas perspectivas de mercado; rendimentos devolvidos, paulatinamente, ao cidadão comum, traduzindo-se isso num aumento da confiança; boa cotação internacional, como se vê pelos casos da ONU e Ecofin... Será este governo, “bem menor”, assim tão diferente do(s) anterior(es)? Sim, é. E não, não é. Continuam os erros, as polémicas e os atropelos próprios de uma forma de estar benevolente para com o facilitismo e habituada ao “amiguismo”, estranha forma de nepotismo, tão portuguesa. Continua a privilegiar-se antes as pessoas que se conhece e as ligações que tem (partidárias ou pessoais), em detrimento do mérito e da competência. Aliás, neste aspecto, tanto nacional como localmente, onde os jogos de influência dos “amigos” são claramente nefastos mas, ainda assim, amplamente postos em prática. Lamentavelmente, não são só os governos PS que têm vindo a condescender nesta forma de estar. Ela é transversal a todas as forças políticas, mormente aquelas que tradicionalmente chamamos do “arco da governação”, agora mais diluído, com o protagonismo e entrada em cena do BE e CDU como apoiantes claros de um governo. Sendo isto novidade no governo central não o é, certamente, nos poderes locais, onde a procura de consensos de poder é habitual para assegurar certa estabilidade e governabilidade. Portanto, não é este governo melhor que o(s) outro(s).
Acontece, porém, que realmente é melhor. Melhor pelos resultados mas, sobretudo, pelas opções. Ou seja, optando por uma solução assente em compromissos de princípio, tornou-se possível ser um governo minoritário com estabilidade governativa, atalhando caminhos muito diversos daqueles tomados anteriormente, muito graças à genialidade inesperada de Centeno, a princípio tão posta em causa, tanto interna como externamente, numa resistência quase patética às ideias e às escolhas financeiro-governativas, sobretudo por parte da oposição (o diabo, o diabo!), no que foi um estúpido exercício de birra, por um lado e, por outro, à habilidade política de Costa, cuja capacidade para construir consensos é admirável. Tudo amparado generosa e afectuosamente pelo Presidente Marcelo, outra das enormes surpresas boas. Não é despiciendo o papel dos partidos apoiantes do governo: a CDU, com a maturidade duma velha senhora, fiel à palavra dada, mesmo a custo de votos; o BE com a irreverência inexperiente das ideias feitas e não testadas, mas contribuindo com alguma frescura a uma máquina pesada e saturada. Muito destas ideias não podem sequer ser consideradas, por serem diametralmente opostas a tudo aquilo que são as opções políticas de fundo do País, assumidas em contexto internacional. Têm algo de realidade paralela, num país “far, far away”, mas fazem o seu papel, satisfazendo os seus próprios eleitorados. Para mais, a opção de fundo do governo de devolver rendimento e corrigir injustiça social, reavaliando medidas verdadeiramente chocantes do anterior executivo – executivo propriamente e não governo, porque o seu apanágio foi “ir além da troika” e obstinadamente seguir esse rumo, para que Portugal estivesse melhor, “mesmo que os portugueses não estejam”. De todos os disparates e laivos arrogantes ditatoriais de quase-fascismo, traduzido em frases feitas e aberrantes, debitadas por elementos do anterior executivo, esta foi, porventura, a mais ilustrativa da mentalidade que então vigorava. Mais que o “emigrem!” ou que a arrogância institucional da felizmente-ex-presidente-da-assembleia-da-república, toda ela inconseguimento, “Portugal está melhor mesmo que os portugueses não estejam” (apenas comparável ao “aguentam, aguentam”) é a visão de quem não compreendeu que um país quebrado não se endireita sem esperança e confiança. E quanto mais se insistiu, mais se derrotou o ânimo. E os custos, foram enormes. Marcelo trouxe o calor humano que não é habitual nos políticos e de o País precisava, diga-se; Costa puxou pela confiança nacional, revertendo o status quo e devolvendo rendimento.
É uma política sustentável? Não sei. Não sou economista nem politólogo. Resultou? Está a resultar, com repercussões além fronteiras: o artigo do “Finantial Times” sobre o sucesso da política portuguesa, por exemplo; a eleição de Mário Centeno... “particularmente saboroso”, se pensarmos que há poucos meses as opções orçamentais de Portugal eram postas em causa, continuamente, pelos “parceiros” europeus.

Particularmente saboroso em tudo o que se disse. Uma catástrofe, contudo, quase como a outra face duma moeda, noutros aspectos. O ano foi também particular e nefastamente doloroso, em especial pela tragédia dos incêndios. Nunca em Portugal tínhamos assistido a uma catástrofe destas dimensões e com esta crueza. Chocou a dimensão, o horror, a incapacidade de reacção útil, a eficácia de uma estratégia lúcida... Chocou a tragédia humana e os quilómetros, a perder de vista, de área destruída. Nunca tinha ido ver, de propósito, o resultado dum incêndio. Já tinha visto, en passant, mas sempre em razão de ter passado numa zona ardida por outra qualquer razão. Nunca para ir ver propositadamente, porque nunca gostei de insistir na desgraça, nem nunca a tinha sentido de perto, mesmo quando, há dois ou três anos, ardeu a pequena mata em frente de minha casa. Mas este ano fui. Já semanas depois dos incêndios, ainda senti o cheiro intenso a queimado e a roupa ficou negra, pelo lado de dentro. Aqui e ali, ainda fumo. Uma experiência nova a aterradora para mim. Janelas e portas distorcidas pelo calor, em casas não ardidas; jardins e varandas de casas destruídos; pequenas hortas dentro de povoações ardidas, mesmo junto às casas; sinais de trânsito fantasmagoricamente enegrecidos; cabos eléctricos derretidos, estradas fora, e restos de postes suspensos no ar, ardidos por baixo e seguros por cabos não ardidos mas completamente distorcidos... E uma paisagem, a perder de vista, muito para lá do que consegui ver, queimada até ao chão, negra e decrépita. As árvores carbonizadas, queimadas até às raízes, só restos de paus de fósforo, numa desolação árida. Fiz aí o meu luto desta tragédia.
Num cenário onde tantas coisas podiam ter corrido mal, tudo realmente acabou mal. Muitas culpas, sem ser claro de quem. Começa pela impreparação. Pela incapacidade de resposta a um cenário desta natureza. Não sei se é possível a preparação para a tragédia, destas dimensões. Não sei. Mas tem de ser. Deveria, na verdade, ter sido. Claramente, fosse por que fosse, não estávamos preparados. Nem como país, nem como cidadãos, nem como protecção civil... O desnorte foi evidente, os meios inadequados (não sei se suficientes ou não) e a opção estratégica caótica. Tudo errado, incluindo a comunicação de emergência, a comunicação aos atingidos e a comunicação ao país, verbal e corporal. Atitudes erradas, palavras erradas, timings errados. Desnorte, portanto. Um perfeito caos.
Com o país mergulhado num caos emocional, a par com as consequências materiais da tragédia, começaram a surgir os abutres da situação. Primeiro muito contidos, mas igualmente em desnorte. Depois desenfreadamente desbocados, atiçados pelos media diversos, com directos constantes e repetidos, reportagens “de fundo” (vá-se lá saber o que isto é) e outras que nem de raspão, com jornalistas a fazer reportagem junto a cadáveres, mostrando à saciedade e despudoradamente a desgraça e o sofrimento alheios, numa guerra de shares absolutamente ridícula, mostrando o lamaçal ético em que neste momento os media em geral (sem querer particular nem generalizar, porque há honrosas excepções) estão mergulhados. Semanas a fio com os noticiários a abrir e a fechar com o mesmo assunto, desgastando a paciência de qualquer um e explorando ao máximo, para dividendos de audiências, a situação do país. Poderia ter acalmado, não fosse uma segunda tragédia, três meses depois, voltando tudo ao início: governantes desnorteados; oposição hermeticamente fechada em argumentos infantis e caducos; media exacerbando ânimos e explorando a desgraça. Há muito que se perdeu a fronteira entre o dever de informar e a exploração sem pudor; os factos noticiosos (que deveriam ser factuais apenas) e o eivar de opinião mais ou menos tendenciosa, de acordo com o pensar e opção política de quem a veicula, manipulado descaradamente a opinião pública, já tão habituada a não pensar por si (para que é que há-de pensar, se há tantos a fazê-lo e ainda por cima bem pagos)... Mas isso é outra história.
Os debates no Parlamento são espectáculos de quase divertimento, não fosse a gravidade da situação, tal é a incapacidade de debater ideias, alicerçadas numa estratégia consequente e coerente. Barulho muito. Política pouco. Birras e polémicas de faz-de-conta, sempre à espera de que qualquer coisa corra mal para se aventar um pedido de satisfação, quase infantil, com pessoas absolutamente ineptas e desprovidas de sentido ético e do mínimo de inteligência política, refugiando-se numa esperteza bacoca de habilidade de jogar com a opinião pública. Diz-se mais o que se sabe que as pessoas gostam de ouvir do que aquilo que realmente deve ser dito. Viu-se com os incêndios; vê-se com qualquer notícia que, mesmo que remotamente, diga respeito a alguém ligado ao governo (fazendo aqui os media e, em particular as redes sociais, o trabalho sujo, numa era em que tudo e todos estão constantemente em cheque); vê-se na mais recente polémica “Raríssimas”, que é já vulgaríssima, a que se juntou entretanto o caso “Século”... Para quem já trabalhou numa instituição desse tipo, custa ver pessoas menos escrupulosas a servirem-se em proveito próprio da boa vontade e dos meios postos ao serviço de quem precisa, pondo em causa a honradez de quem todos os dias luta e trabalha por esses projectos e por essas pessoas. Mas também, por certo, não causará estranheza que isso aconteça. Eu próprio poderia enumerar outros tantos abusos quotidianos, que se fizeram e continuam a fazer por muitas instituições e que, regra geral, vão sendo mais ou menos do conhecimento das pessoas, à boca pequena e se aceita como sendo habitual... É assim que vamos, nos nossos brandos costumes. Estes casos em concreto só tomaram as proporções conhecidas pela insistência dos media. Não são extraordinariamente diferentes de muitos outros, se se procurar bem. E mais não digo.
Particularmente catastrófica também é a situação no futebol, no nosso país. Falo disto como mero expectador externo, sem qualquer interesse concreto, na medida em que o futebol em si não me merece qualquer atenção, como já doutras vezes referi. Não haverá para mim actividade mais inútil que o futebol, na medida em que transforma pessoas normais em perfeitos brutos, incapazes de raciocínio. O futebol interessa, sobretudo, a quem dele vive: jogadores, treinadores, empresários, membros de clubes e staff diverso, e toda uma parafernália de gente que ronda este círculo e dele se alimenta. A todos os outros não interessa absolutamente nada. Mas eis que o futebol conseguiu este feito extraordinário: convencer uma enorme massa de pessoas de que, realmente, interessa e tem a ver com eles. Que é seu! Classifica-os entre sócios e adeptos e com todos conta para engrossar as suas fileiras de dependentes e manter vivo um negócio de milhões, sustentado pelas chorudas quantias que as marcas, televisões e patrocinadores vários se dispõem a pagar em troca da publicidade contínua e da influência (de moda, de padrões de vida, de comportamento...) sobre as ditas massas. Um negócio de milhões de que a massa beneficia absolutamente zero, mas que defende o clube com a bestialidade insana de quem não precisa de qualquer outro argumento que não seja defender o “nosso” clube: os outros são sempre os inimigos, num jogo perigosamente popularista. O fascínio pelo mundo do futebol, para pessoas como eu, está justamente aqui: na análise psico-sociológica que se pode fazer.
Vimos assistindo a uma degradação deste mundo: se é verdade que desde há muito que o futebol cai na suspeição de tráfico de influências e outros negócios menos lícitos (nunca nada se provando nem nunca havendo culpas ou culpados), quase como se já fosse dado adquirido, discutido à porta de cafés e cumplicemente aceite pelas massas, acontece que nos últimos tempos têm vindo a adensar-se comportamentos e atitudes que denotam um perigoso derrapar ético. Incitações constantes e cada vez mais graves e audíveis à violência e ao ódio; suspeições atiradas à comunicação social; fait-divers misteriosamente tornados públicos; adopção de uma postura conflituosa constante (mais que o habitual)... enfim. Remato, retomando e reescrevendo um post anterior: há uma equipa que vem ganhando e outras que querem ganhar. Usa-se, para tanto, todos os artifícios, sendo que o que passa no jogo de futebol propriamente dito é o menos importante, uma vez que, como já sabem muito bem, o estado de alma dos jogadores, pressionados por múltiplas forças e condicionados por diversas vertentes deste jogo, nomeadamente pelo trabalho das claques e dos fazedores de opinião, é que ditará o resultado: a derrota virá se forem capazes de desestabilizar suficientemente o adversário em campo e instilar neles a incapacidade para ganhar ou o sentimento de inferioridade. Isto, mais que a qualidade técnica e táctica, é que, hoje, determina o jogo, sobretudo, nas fases finais dos campeonatos, onde tudo parece valer, apostando tudo neste jogo psicológico. A estratégia tornou-se a desestabilização do adversário por todos os meios possíveis. Há muito que o futebol dos dias de hoje se deixou de jogar nos campos.
Com tudo isto, resta-nos a esperança de que 2018 seja, de facto, melhor. E que os nossos políticos se elevem (finalmente) à altura das suas responsabilidades. E que deixem de fazer figuras ridículas, portando-se como se não tivessem nada a ver com o assunto... Podemos sempre sonhar. Vi, a propósito, uma rábula dos “Donos Disto Tudo” de se lhe tirar o chapéu, caricaturizando a líder de um partido e o candidato benzoca a líder doutro... Um mimo.
Ah, nota final: o senhor Trump não está doido. É simplesmente estúpido. Americanos: acordem para a vida. Vocês votaram no homem. Ele não chegou lá por milagre nem foram os russos que o lá puseram. Foram vocês, com o vosso maravilhoso e avançadíssimo sistema eleitoral. Agora aguentem-no. Façam-nos (ao resto do mundo) é um favorzinho: não ajam como se não fosse nada convosco, fazendo ares de espanto por cada desmando da criatura. E, já agora, não tornem a votar no homem.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Fátima, Torremolinos e as claques de futebol

Ando algo arredado da escrita. Não propositadamente. Apenas porque é assim, pelo menos comigo. Nunca fui capaz de escrever por atacado ou porque tem de ser. Admiro a disciplina de quem o faz e consegue fazer quase livros à la carte. A mim, a escrita nunca me veio por horários nem por calendário. Isto acontece-me assim, mesmo que assunto não falte, como é o caso... Tanta coisa a acontecer, em tantos campos e vertentes... Tanta coisa a despertar a vontade de escrever... Talvez porque a minha vida não dependa disso (com o sucesso monetário do que escrevo, já teria morrido de fome!) ou então, melhor, porque me sinto mais instrumento das palavras do que autor delas. Vão surgindo, devagar, suscitadas por qualquer coisa, boa ou má, e vão ficando, pairando até, à espera que possam tomar forma real, objectiva, e eu as possa escrever, num exercício subjectivo e objectivo ao mesmo tempo. Uma visão delas, que vão fazendo a sua aparição, ante o meu esforço intelectual e de raciocínio de as escrever.
Vem isto a propósito do artigo do Expresso, em entrevista ao Doutor Anselmo Borges, insigne filósofo e pensador, e que também é padre. Nela acaba por, de forma desempoeirada, questionar a compreensão comum do fenómeno de Fátima. A conversa vinha a propósito da crítica, melhor, do espírito crítico (ou falta dele) e da forma como a Igreja (em maiúsculas porque estou a referir-me à instituição) lida mal com ele. É precisamente o espírito crítico (e não a falta de fé) que lhe permite fazer a distinção extraordinária entre a aparição (objectiva) de Maria em Fátima e a visão (subjectiva) que os pastorinhos tiveram em Fátima, ou seja, a forma como vivenciaram uma experiência pessoal de fé. Assim, é perfeitamente possível “ser um bom católico e não acreditar em Fátima, porque não é um dogma”. Permito-me citar a entrevista do Expresso (16/04/1017), para dizer isto: não se nega o fenómeno de Fátima, note-se, põe-se em causa a objectividade da aparição em contraponto com o que poderá ter sido uma vivência pessoal (uma visão) de fé daquelas crianças, no contexto e nos paradigmas da época.
Nada para mim poderia fazer mais sentido. Talvez porque, eu próprio, fui depurando a minha forma de crer em Deus (fé) de roupagens, religiosidades, preconceitos, ideias feitas e, porventura, controladas, apenas para tentar chegar a um conceito de Deus com o qual me sinta confortável, depois de ter passado (e passar) dificuldades na vida nas quais Deus não teve, absolutamente, nenhum papel. Percebi que, por mais que rezasse, ou pedisse, ou firmemente acreditasse e me abstivesse de determinadas coisas ou comportamentos, nada mudaria. As coisas aconteceriam exactamente como tinham que acontecer; os problemas estariam aí para resolver; as dificuldades não desapareceriam; as pessoas de que gosto e me fazem falta, foram morrendo à mesma. A religião responde-me que nada disso era suposto ter acontecido de outra forma; o que mudaria com as minhas preces fervorosas seria o não sentir-me sozinho. Deus estaria comigo, caminharia comigo, partilhando o meu sofrimento e tornando-o suportável. Durante um tempo, isso bastou. Foi deixando de bastar, à medida que se sucediam (e sucedem), uns após outros, episódios tristes, de sofrimento, de perda, de dificuldades, de desemprego... De muitas vezes, procurei ajuda na oração. De nenhumas tive resposta. Percebi (fui percebendo), que não é Deus que está errado. Sou eu. Eu é que precisei de depurar o meu conceito de Deus; a forma como ele se poderá expressar na minha vida e a maneira como eu hei-de relacionar-me com ele. Hoje temos uma relação de mútuo respeito. Ele faz a vida dele; eu a minha. Não duvido em nada da sua existência. Mas não mudo a minha, por causa disso. Esta depuração, trabalho em contínuo aperfeiçoamento, sempre mutante com as circunstâncias da vida, a reflexão, o espírito crítico e teológico (sim, também tenho!), o contexto do mundo em que vivemos, permite-me este conceito de Deus com que me sinto confortável e no qual a religião ocupa um lugar verdadeiramente marginal. Nem eu estou inteiramente certo e todos os outros errados; nem os outros certos e eu errado. Também aqui há uma subjectividade própria de uma vivência pessoal.
Tenho já dito que escrever é expôr-se, em alguma medida. O texto de hoje é claramente uma exposição, íntima, revelando um pedaço do turbilhão em que o meu raciocínio se move. Neste caos, há sentido para mim. Há, no entanto, alguma segurança neste expôr-me, porque o número de pessoas que lerá é francamente irrelevante e, para os que lêem, o que lhes importa é o gosto por ler o que eu escrevo e nada podia ser mais circunstancial do que a minha experiência pessoal.
As redes sociais, sobre as quais me debrucei à tão pouco tempo (veja-se, por exemplo, o texto do dia dos namorados) são pródigas e rápidas nos comentários. Tenho lido coisas absolutamente incríveis sobre a entrevista do Doutor Anselmo Borges, também padre. Atrevo-me a dizer que a maioria desses comentários provém de pessoas que não passaram além do título ou, então, passando, não entenderam nada do que leram. E isso é triste. É verdade que os espíritos críticos, dotados de muita inteligência, nem sempre são compreendidos. Normalmente não o são. Seja porque escrevem ou falam com categorias semânticas e de raciocínio pouco usuais para o dia-a-dia, seja porque o seu pensamento e a forma como o expressam requer que, ao ler, se utilize realmente a inteligência. Enfim, a liberdade de opinião é algo bonito e desejável, mesmo que seja de pessoas que têm tanta dificuldade em lidar com o espírito crítico e em aceitar uma opinião diversa ou abrir o seu pensamento e o seu raciocínio à novidade e à diferença. É exactamente isto que o Papa Francisco tem feito e é exactamente por isto que o seu discurso é pouco aceite e tem tanta dificuldade em entrar numa certa parte do catolicismo moderno, e não apenas na Igreja institucional. É uma pena ver que há cristãos leigos que continuam com as janelas encerradas ao mundo, um bocadinho à maneira do espírito anti-moderno do século XIX e do Papa Pio IX... E é também exactamente por isto que o Papa Francisco tem tanta aceitação fora da Igreja. A mudança está aí. Somos seres resistentes à mudança, por natureza. Mas ela acontece, apesar disso. Adaptarmos-nos a ela ou não é o desafio. A forma como escolhermos, definirá as pessoas que queremos ser.
A propósito da liberdade de opinião não poderia ficar de fora desta reflexão o fenómeno das claques do futebol, de que tanto se tem falado, por causa do mau-gosto na escolha das frases com que vituperam nos jogos. É bem sabido, entre os que me conhecem, que eu não gosto de futebol. Isso dá-me uma certa capacidade de ver além das rivalidades e olhar para o futebol como aquilo que ele realmente é: um jogo. De emoções, de rivalidades, de milhões de euros, envolvido num sub-mundo, mais ou menos delinquente e quase marginal, de apostas, de drogas, de negócios por baixo da mesa, trocas de influências, insultos, galhardetes, pressões... a coordenar uma parte significativa disto as claques, legalizadas ou não, dirigidas por indivíduos na sua maior parte com cadastro, sem qualquer outra ocupação profissional. Fazem ainda parte desta “machina” enxames de comentadores e fazedores de opinião, em todos os canais, que vão difundindo determinadas ideias em detrimento de outras; veiculando certas formas de estar, pensar e agir e construindo verdadeiras correntes de opinião. O terreno fértil para tudo isto: uma massa adepta socialmente transversal e culturalmente multiforme, com uma característica comum: o amor pelo seu clube e o ódio pelo outros. A escolha das palavras não é ao acaso. Amor e ódio. Eis o que define o fenómeno do futebol, no meu entendimento. Um fenómeno sócio-cultural, julgo que mal estudado pela sociologia e pela psicologia, em muitos casos assumindo uma forma de relação com os adeptos que ronda a experiência religiosa, quase vivencial... Um jogo cercado por um autêntico polvo. No cerne de tudo isto duas coisas: as somas inimagináveis de dinheiro que movimentam esta máquina e que a máquina faz movimentar e, num núcleo mais pequenino, os jogadores, figuras semi-heróicas ou endeusadas, pagas a peso de ouro, literalmente. Poderá ser uma visão redutora; para um adepto convicto, será por certo uma visão horrífica, mas para mim, muito evidente, tentando ser tão imparcial quanto as circunstancias que tecem a minha visão sobre o assunto permitem. É certo que este fascínio pelo jogo, mormente pelo jogo de rivalidades, tem acompanhado a humanidade ao longo da História. Escuso-me de exemplos, deixando-os para um estudioso mais abalizado. Muito gostaria de ler um tratado académico sobe o assunto... É certo também que o poder político, épocas fora, tem aproveitado esse gosto peculiar da humanidade, servindo-se dele, acicatando-o por vezes, alimentando-os por outras, colhendo dele grandes dividendos. A nossa época, contudo, porventura por ter sido esvaziada da maior parte das referências ancestrais, está esfomeada de coisas que lhe deêm sentido e respostas e caminhos... De coisas que possam canalizar a dicotomia do amor/ódio, que a Igreja, em tempos idos, controlou, mas cujo papel há muito está esquecido.
Ora, não há coisa que mexa mais com as emoções do que um desafio de futebol. Para os adeptos, evidentemente, e que são, atreveria a dizer-me, a larga maioria das pessoas. Há, portanto, um vasto campo de oportunidades para o jogo. As últimas décadas parecem ter sido fecundas na forma como os múltiplos vectores que controlam o polvo que rodeia o jogo têm oferecido aos adeptos verdadeiras experiências de satisfação pessoal, conquistando-os, quase sem esforço, para alimentar a enormíssima “machina” do jogo, colhendo, entre outros, os frutos do seu amor/ódio. É aqui, neste campo, que entram as claques, recolhendo, sobretudo esse ódio, exacerbando-o ao ponto do ridículo e, mais do que isso, do irracional. Só isso explica as letras (se se pode chamar letras) daqueles urros que vão soltando nos jogos, verdadeiros gritos de ódio, e que a mim me lembram os relatos feitos pelos escritores antigos do que seriam os gritos de desafio entre forças antes dos combates, insultando-se mutuamente, procurando a desestabilização e a quebra do moral, provocando no outro lado, as mesmas invectivas ou piores. O fenómeno, trazido à escala do que hoje assistimos, é exactamente o que se passa. Insultos, verdadeiramente ofensivos, sem qualquer barreira moral ou ética, visando a provocação gratuita e até, quem sabe, a violência. A uns, respondem outros, numa escalada irracional mas, porventura, bem pensada e com um objectivo perverso por detrás. Abre-se aqui campo para a discussão na violência no mundo do futebol, verbal e física, uma outra vertente que acompanha este jogo. Ganha, assim, não a melhor equipa, mas a equipa mais bem preparada psicologicamente para aguentar este jogo e aquela que tiver a melhor máquina a abrir-lhe caminho. Para mim, este ano, isso é muito evidente. Há uma equipa que vai em primeiro e outra que lhe quer passar à frente. Usa, para tanto, todos os artifícios, sendo que o que passa no jogo de futebol propriamente dito é o menos importante, uma vez que, como já sabem muito bem, o estado de alma dos jogadores, pressionados por múltiplas forças e condicionados por diversas vertentes deste jogo, nomeadamente pelo trabalho das claques e dos fazedores de opinião, é que ditará o resultado: a derrota virá se forem capazes de desestabilizar suficientemente o adversário em campo e instilar neles a incapacidade para ganhar ou o sentimento de inferioridade. Isto, mais que a qualidade técnica e táctica, é que, hoje, determina o jogo, sobretudo, nas fases finais dos campeonatos, onde tudo parece valer. Tenho acompanhado, por exemplo, a estratégia de um outro clube, completamente arredado da possibilidade de ganhar o campeonato mas que nutre pelo clube que vai à frente um autêntico ódio irracional, que ultrapassa qualquer rivalidade desportiva que a razão possa compreender: a estratégia tornou-se a desestabilização daquele adversário por todos os meios possíveis, fazendo uso inclusivé de ferramentas ridículas, levantando questões que sabe, muito bem e à partida que não vão ter prosseguimento, mas aventando-os e tentando provocar um contínuo clima de polémica, na expectativa da quebra psicológica do adversário. Se acontecer, será para este clube, a derradeira vitória: a humilhação do adversário, quebrando a sua psiqué e provando ter uma “machina” mais eficaz. Há muito que o futebol dos dias de hoje se deixou de jogar nos campos.
Poderíamos pensar, eu no meu bom-senso pensaria, que os clubes quereriam demarcar-se desta realidade. O facto é que, não só não se demarcam como fazem vista grossa, facilitando estas realidades oficial ou oficiosamente. A questão não está em saber se as claques devem estar ou não legalizadas. A discussão deve ser que tipo de futebol queremos e se as claques, quaisquer que sejam e da forma como se organizam, têm lugar num futebol limpo... Dificilmente veremos esta discussão. Ganhar tornou-se o único objectivo, competir é quase irrelevante. Para ganhar, far-se-á o que for preciso.
Vamos assistindo, mais ou menos, impotentes, a este clima crispado, que perpassa todo o mundo, neste momento um pouco à deriva, tudo na expectativa do que pode acontecer, dependendo do que o senhor Trump decidir fazer. Percebeu, não sem uma boa dose de “espírito americano”, que as suas falhas como Presidente ponderado e para quem os seus concidadãos e o resto do mundo olham, podem ser colmatadas (ou, pelo menos, esbatidas) pela força, desviando o olhar para a panela de pressão que é o mundo. Mostrou, simplesmente, que não tem medo de utilizar as armas e a força que tem. Pode concordar-se ou não. Não consigo ainda, neste momento, perceber os efeitos que esta posição traz. Será, porventura, este o maior perigo dos populismos vazios: fazer coisas aparentemente justificadas, que talvez outros gostassem de fazer mas não têm coragem para fazer ou não podem, sem conseguirmos perceber onde é que esses actos de aparente justificação nos podem levar. Além disso, dogma número um do populismo, quando as coisas não correm como se promete ou não se consegue cumprir o que se prometeu (provavelmente por ser inverosímil ou porque os outros não percebem a grandeza do pensamento populista e colocam entraves que se olham como absurdos), nada melhor do que criar um outra questão onde a superioridade do que somos ou de quem somos basta para se afirmar, sem mais força de argumentos.
Uma última palavra para o hotel em Torremolinos e a questão dos finalistas. Não me alongarei. Tome-se um grupo de adolescentes em idade de se emanciparem; retirem-se do seu ambiente e da supervisão das figuras a que estão habituados e que têm como autoridade; lancem-se num ambiente propício, sem este entrave, com bebida e drogas à descrição e com a ideia já pré-feita de que, naquela viagem, tudo é possível. Juntem-se outros factores essenciais desta questão, como sejam as agências de viagens e o seu papel; as eleições das associações de estudantes ou das comissões de finalistas; o factor económico das centenas de milhares de euros que estes eventos geram... O que se espera? Um grupo de peregrinos?... Todos nós já vimos, melhor ou pior, imagens destas “viagens” na televisão... Eu, que tenho a desdita de viver num local que tem um dos maiores festivais de verão, já vi ao vivo coisas indescritíveis... Deito-me, apenas, a indagar: rituais de emancipação?... Diversão?... Limites?... “Viagens” de finalistas?...
Também aqui há muito terreno fértil para se discutir e reflectir. E também aqui, dificilmente, veremos esta reflexão feita.